Os olhos do amor

Raul Follereau dedicou a vida inteira à causa dos leprosos. Um dia, ao visitar uma leprosaria no Extremo Oriente, ficou muito surpreendido: entre tantos rostos apagados e quase mortos, havia ali um homem que conservava um olhos límpidos, vivíssimos, e um sorriso luminoso, sempre que lhe diziam uma palavra amável ou ofereciam alguma coisa. Quando Follereau quis saber o que mantinha esse homem tão agarrado à vida, disseram-lhe que observasse o que sucedia todas as manhãs.
Descobriu então que, todas as manhãs, logo a seguir ao pequeno almoço, o leproso descia para o pátio e sentava-se diante do muro que rodeava a leprosaria. Esperava ali, esperava, até que, a meio da manhã, por de trás do muro, aparecia, durante uns segundos, outro rosto, uma carinha de mulher, idosa e enrugada, que simplesmente sorria. O homem comungava aquele sorriso e sorria também. Instantes depois, o rosto da mulher desaparecia e o leproso, resplandecente, já tinha alimento para aguentar mais uma jornada e aguardar que, no dia seguinte, regressasse o vulto querido e sorridente.
Era a sua esposa. Quando levaram o seu marido para a leprosaria, ela mudou-se para a aldeia mais próxima e vinha, assim, cada manhã manifestar-lhe o seu amor. “Ao vê-la, sei que ainda estou vivo” – declarava o leproso.
O bendito professor da Universidade de Paris, Hugo de São Víctor, costumava dizer: “O amor é o olho!” Quando olhamos uma pessoa com olhos de amor, vemos correctamente e captamos o seu mistério. Descobrimos nesse rosto coisas lindas, mesmo que se trate de um leproso ou de uma velhinha enrugada. “As suas rugas são uma paisagem bela de cortiça e musgo” – escrevia um poeta . Poeta, criador, é aquele que sabe olhar com ternura e cordialidade.
Perante uma pessoa, os que têm olhos de amor, vêem nela enantos, outros não. O amor é o olho! Pelo contrário, quando olhamos para alguém com olhos cansados, cínicos, invejosos, amargurados, ou não vemos nada ou ficamos perplexos, contrariados, em face do que vimos.
Um olhar amoroso transfigura a pessoa, cura-lhe as feridas, liberta-a de medos e inseguranças, restaura-lhe as energias e multiplica-as. Numa cena do filme “A noite de São Lourenço”, a protagonista, cheia de complexos devido às manchas que tem na cara, não consegue esconder a sua tristeza e a sua angústia. De repente, à luz da fogueira, o seu rosto ilumina-se, resplandece incandescente de gozo e de beleza. Qual o segredo deste milagre? Uma rapaz tinha fixado nela o seu olhar e declararado o seu amor. E ela agora sentia-se a mulher mais linda e mais feliz que há debaixo do céu.
A Virgem Maria sentia-se olhada com amor e, por isso, tinha consciência de ser maravilhosa: “O Senhor olhou para a sua humilde serva, fez em mim maravilhas”.
Um olhar de amor não ignora o lado feio das pessoas nem as maldades que há no mundo, a violência e a injustiça, a opressão e a miséria, o rancor e a soberba. Mas tem a elegância de focar, sobretudo, o lado positivo e luminoso. “Bem melhor seria o mundo,/ se a gente pensasse assim:/ Sei coisas boas de ti/ e tu sabe-las de mim”.
Lembro-me de que, no dia em que faleceu meu pai, estava um sol esplendoroso. Mas, nesse dia, eu estava cego em relação a tudo o que me rodeava. Sentia-me só, angustiado. Apesar da plena luz daquele dia de Julho, tudo me parecia escuro como se fosse noite ou estivéssemos no Inverno.
É bem verdade que “não vemos com os olhos, mas através dos olhos” – como dizia Ortega y Gasset. Vemos com o coração. A bondade e a beleza andam por aí, mas vê-las ou não, captar com exactidão o que vemos, depende do que se está a passar no nosso coração. Os nossos olhos vêem o mundo lindo ou feio, bom ou mau, alegre ou triste, conforme estivermos lá por dentro.
O mundo seria melhor, se o víssemos com olhos de amor. Os pobres e humildes são explorados, porque “não há quem deixe entrar o seu problema no coração” – observava o profeta Isaías.
Esta observação é bem certeira. Estamos a passar, na televisão, as imagens horríveis de alguma catástrofe: um terramoto, um ciclone, um incêndio, um acidente na estrada, o desmoronamento dum prédio. Ficamos impressionados, talvez até comovidos, mas continuamos imóveis no aconchego do sofá. Nisto, reconhecemos, entre as vítimas, um parente próximo, o pai, a mãe, o marido ou a esposa, um irmão, um amigo. Não nos irrompe logo da garganta um grito medonho? Não damos imediatamente um salto e corremos ao telefone para saber mais novidades? A que se deve tal mudança? É que antes captávamos o sucedido apenas com os olhos e com o cérebro, agora captamo-lo com o coração.
O cristão, segundo Bento XVI, é um “coração que vê”. O bom samaritano da parábola contada por Jesus viu o mesmo que o sacerdote e o levita: um desgraçado a perder sangue e a gemer na valeta da estrada. Mas, enquanto o sacerdote e o levita só viram com os olhos e passaram adiante, o samaritano “compadeceu-se”: “viu” com o coração.
Em face da espantosa miséria que vai por esse mundo fora, o primeiro que temos a fazer é superar a insensibilidade, a indiferença, e deixar-se invadir por uma inquietação saudável. “Se queres ser um verdadeiro reformador – ensinava Gandhi – tens, primeiro, de sentir”. Isto é, tens de “ver” com olhos de amor. Só isso nos sacode a consciência e nos leva a deixar as próprias trincheiras.

Abílio Pina Ribeiro, cmf

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