NOTAS SOBRE AS BARBAS E 0S HÁBITOS

1. As barbas…

No calendário litúrgico havia antigamente a semana dos “santos barbudos”, Antão, Amaro e outros. As barbas, para os pintores antigos, não passavam de um truque, uma saída fácil para representar figuras desconhecidas; uma espécie de máscara ocultadora de rostos que ninguém viu nem sabe como eram.
Esses santos de barba infinita, de tremenda vida, tornaram-se populares. E muitos deles fugiram da convivência humana, recolhidos nas suas covas e solidões desérticas. Mais populares os que mais evitaram a popularidade. Vejam que bonito!
As barbas mereceram a atenção de notáveis eclesiásticos. Clemente de Alexandria, no seu “Pedagogo” – citemos com rigor: L. III, c. III – considera pecado de desonra para com o Criador despojar-se alguém do “soberbo pêlo” com que Deus quis dotar os leões e os homens. Santo Epifânio chega a invocar as “Constituições Apostólicas” para condenar o barbeado.
Ao invés, até ao século IV, Jesus e os Patriarcas eram representados como pessoas imberbes, porque a barba se reservava para os “lutadores”; os imberbes eram os que gozavam da paz de Deus. Nos antigos mosteiros ocidentais havia toda uma liturgia especial para a rapagem da barba.
Já os padres diocesanos, até ao século XVII, deixavam crescer a barba. Mais tarde, preferiram simplesmente o bigode ou a “mosca” no queixo. Pouco a pouco, a barba ficou reservada para os missionários, uma vez que a branca estriga lhes dava um ar venerando e respeitado.
Hoje em dia vê-se de tudo: guedelhas, barba, bigode, “mosca” – mas de modo geral o clérigo anda “rapado como um padre”, no dizer de Eça de Queirós. Lá vão os tempos em que um bigode no altar provocava falatório e escândalo. A seguir à primeira guerra mundial, bastantes clérigos voltaram com povoadas celhas no rosto, a ponto de Roma intervir para conceder aos bispos potestades sobre as barbas clericais. O Direito Canónico, forjado nessa altura, ocupava-se do cabelo dos clérigos, sem excessivo rigor e com seriedade.
Ai estas ondulações eclesiásticas entre a abominação do rapado e a abominação do barbudo! Entre os tempos em que era pecado ser barbeiro e os tempos em que o barbeiro era quase o único profissional que tinha assento oficial nos Seminários!

2. Os hábitos…

E os hábitos? Nos alvores do século IV viviam no deserto e na montanha, a umas dez ou quinze léguas de Alexandria, no Egipto, mais de quatro mil monges. E, segundo uma testemunha, viviam “como queriam e podiam”, cobrindo o corpo “com folhas de palmeira e peles de carneiro”. Bastava-lhes contemplar a beleza tranquila dos lírios para afugentarem qualquer assomo de inquietação pelos trapos.
Quando São Pacómio começou a reunir os monges dispersos, por volta de 315, estabeleceu um tipo de vestuário ou “hábito” igual para todos. O hábito não significava apenas o despojamento do mundo, mas sobretudo “o voluntário rebaixamento ao nível da pobreza de Cristo”. Era uma túnica grande, simples, de tecido forte sem qualquer espécie de luxo.
As sucessivas Ordens Religiosas foram complicando as coisas. O que para aí tem ido de modelos e panos e cores e alfinetes e pregas e cordões e capuzes!
São Francisco veste os seus frades como se vestiam os pobres da época, os “menores”. São Vicente de Paula veste as suas “filhas” como se vestiam as camponesas da zona. A motivação primeira do hábito não é distinguirem-se os frades e as freiras dos outros pobras mortais, mas abraçarem a pobreza de Cristo e defenderem-se da moda, fútil, cara e passageira.
E já agora, falemos também da sotaina clerical ou batina – palavra que vem do latim “abbatina-(veste)”, ou seja, veste própria de abade.
“Se tivermos que nos distinguir do povo, seja na conduta e não na farpela” – escrevia Celestino I, numa carta do ano 428, reprovando o costume surgido entre os bispos de Lérins, França, de trazerem um hábito especial, à maneira dos monges.
De então para cá nunca mais acabou o debate sobre a fardamenta dos clérigos. No Concílio Vaticano I, um bispo siciliano propôs (e não se riu!) que se declarasse a batina “de direito divino”.
A verdade é que Jesus vestiu como qualquer dos seus conterrâneos. E os clérigos cristãos vestiam como qualquer cidadão do Império Romano até chegarem os Bárbaros, lãzudos e envergando uma túnica até ao joelho: por uma questão de contraste e de símbolo, os clérigos decidiram então continuar a vestir à romana, cabeça rapada e túnica talar (isto é, que desce até ao calcanhar ou talão).

3. “O que habita nos céus sorri” (Sl 2, 4)

São Basílio recordava com emoção os felizes momentos dos seus primeiros fervores, em que as lágrimas lhe ensopavam a barba, qual unguento a escorrer pela bíblica barba de Aarão… Um dia em que São Filipe Néri acariciava (a brincar, mas com respeito) as barbas de Clemente VIII, o Papa não deixava de sorrir.
Porque não imaginar Deus a fazer festinhas, com seus melodiosos dedos, ora aos santos barbudos que vagueiam por aí, ora aos rostos barbeados com lâmina ou com máquina?
Acho que o mesmo sorriso divino pousa como um luar sobre aqueles/as que trajam à civil e sobre quem anda clerical ou monasticamente encadernado.
E permitam-me acrescentar duas coisas. Primeira: numa sociedade tão secularizada, onde até os sinais exteriores das realidades sagradas e sobrenaturais se vão apagando, importa que as pessoas dedicadas ao serviço de Deus tornem bem clara a sua identidade. Segunda: convém que sobressaiam, antes de tudo, pelos “hábitos espirituais”, a começar pela caridade, o único distintivo que Jesus nos deixou (Jo 13, 35).

Abílio Pina Ribeiro, cmf

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