A BELEZA DAS MÃOS

Mafalda pertence ao rol daquelas “moças em flor” cantadas por Vinicius de Morais.
Tem dezanove Primaveras e frequenta a Universidade, mas nunca se esquece dum episódio que a marcou desde criança. Foi o caso de ter dito à sua mamã: “Tu és muito bonita, mas… as tuas mãos são feias”.
Nessa mesma hora o pai sentou-a nos joelhos e desvendou-lhe um segredo: “Filha, aqui há dois anos, estavas a dormir e o mosquiteiro do teu berço incendiou-se; num instante pegou-se o fogo à roupa e podias ter morrido ali. A mamã acudiu logo e agarrou em ti ao colo, mas… queimou-se, coitadinha!, e as suas mãos, da cor da neve, ficaram como as vês agora”.
Não foi preciso mais nada. Mafalda correu para junto da mamã e declarou-lhe entre soluços: “ As tuas mãos são as mais lindas do mundo”.
Este facto, sucedido há quinze anos, tem-na levado a fazer muitas perguntas sobre o corpo humano. Acostumou-se a vê-lo inseparavelmente unido ao espírito. Onde acaba um e começa o outro? O corpo limitar-se-á ao físico? Mafalda conclui que não. Uma coisa é o globo ocular e outra o olhar; uma coisa são as cordas vocais, e outra, o tom da voz; uma coisa as mãos, e outra o gesto; uma coisa, os lábios, e outra o beijo.
O corpo não se reduz a uma máquina. Infelizmente há quem assim o considere: o coração não passa de uma bomba; os rins, de filtros; o pulmão, de um radiador; o cérebro, de uma calculadora. Quando as peças avariam e já não prestam, por estarem “gastas”, para que guardar esse montão de ferro-velho? Com frequência, de facto, os idosos são considerados um estorvo, deitados fora como trastes inúteis, depositados numa residência de terceira idade ou condenados à solidão e ao abandono. Ou então, defende-se a eutanásia, a morte assistida e a morte provocada.
Há quem diga que “com o seu copo cada um faz o que quer”. Não. Faz-se o que ser quer de um trapo velho ou de uma lata de cerveja vazia. Mas uma mulher que se preze não deita ao lixo o fruto do seu ventre, que é sangue do seu sangue e um tesouro inviolável.
Também não se faz do corpo um espectáculo, uma montra a embelecar e exibir e a qualquer preço, um reclamo para vender automóveis ou iougurtes.
Com a obsessão de “estar em forma”, há quem o maltrate, negando-lhe o alimento necessário. E há quem o prive do asseio, do repouso, dos cuidados de saúde. Umas vezes tira-se-lhe o que razoavelmente devido, outras encharca-se com excessos de gula e sobredoses de prazer.
O corpo é “templo de Deus” e não o “deus do templo”… Não é para idolatrar, manchar e destruir, mas para enobrecer, tratando-o como se trata companheiro de projectos e realizações, aflições e alegrias, ansiedades e esperanças.
Através dele aflora essa realidade mais profunda: o eu humano. Não sou apenas corpo nem somente espírito, mas corpo e espírito, fundidos numa cumplicidade e unidade perfeitas. O corpo partilha comigo os melhores e os piores momentos. Na sua pele depositam o beijo que me faz vibrar com a ternura dos meus parentes e amigos.
O corpo é o espelho da minha alma. Uns olhos puros revelam um coração limpo. Um rosto dá mais notícias do que um telejornal. Um ósculo vale mais do que mil definições de amor.
Diz a Bíblia que o ser humano é “um prodígio”. Temos pálpebras que se movem 25 mil vezes cada dia. O nosso coração bate mais de 41 milhões de vezes no espaço dum ano. E, mais do que isso, através do corpo, podemos comunicar, partilhar vivências com os nossos semelhantes e materializar o amor que nos vai dentro.
Desejo, pois, que todos os corpos sejam considerados zona protegida da fome, da tortura, da violação, das mutilações, dos abusos, do desprezo. Todos os corpos, enrugados ou esbeltos, musculados ou enfraquecidos, em boa forma ou desgastados, merecem respeito, consolo e carinho.
Os corpos desfeitos pelo trabalho mal remunerado, os corpos dilacerados pela doença e pela dor, os corpos destroçados nos acidente e nas guerra, os corpos escravizados dos prisioneiros, dos refugiados, dos migrantes, participam da riqueza e da beleza interior.
As mãos cansadas de amassar o pão, as mãos que se sujam no serviço, são as mais asseadas; as mãos queimadas para salvar uma vida são as mais bonitas.

Abílio Pina Ribeiro, cmf

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