Começo por falar de um anúncio publicitário que passou na televisão durante muitos dias. O anúncio da marca de automóveis Peugeot, acompanhado do slogan: “O leão mostra a sua raça”. E aí vinha a exaltação do automóvel. A sensualidade no traço. O requinte. A sedução. O conforto.
Um símbolo dos sonhos do homem e da mulher de hoje, seduzidos pela força e o progresso imparável, gulosos de dinheiro e de cobiça, de domínio e de poder, de prazer e de sexo, de vaidade e diversão. A história implícita dos filmes, da filosofia, da economia, da política moderna. Quem tem mais cilindrada, mais “cavalagem”, maiores jubas e garras, é que mais pode, mais arrasa, mais domina.
Entretanto, a miragem de um mundo justo e fraterno parece cada vez mais distante. Uma criança dos Estados Unidos consome, diariamente, o mesmo que 50 crianças da Guatemala. A fortuna dos três homens mais ricos do planeta ultrapassa o Produto Interno Bruto dos 48 países menos desenvolvidos. Para vencer a fome no Terceiro Mundo, bastaria investir o que norte-americanos e europeus gastam em alimentos para cães e gatos.
O leão empresarial segue a lei da selva, rouba, mata, esfola. O leão sexual exibe as suas presas, considera-se irresistível. O leão político impõe a sua força. No reino do leão, os templos são os bancos, os restaurantes, os estádios, os casinos, as discotecas, os centros comerciais. O importante para ele é ter – ter carros topo de gama, ter namoradas, ter chorudas contas bancárias, ter “programas espectaculares”, ter estatuto social. O ser – ser bom empresário, ser político honesto, ser bom cidadão, ser bom pai ou mãe de família – isso não importa.
Eis uma história que não condiz com o sonho de Jesus: o sonho da beleza e da verdade, da paz e da justiça, da santidade e da graça.
Mas também há vidas que sugerem outro enredo, outra história. Lembro-me de um Missionário que trabalha num país mergulhado em guerra. Pelas ruas da cidade passa um camião carregado de cadáveres: vão destinados à vala comum, visto que as famílias não podem pagar o enterro. Confidenciou-me o tal missionário: “Eu sentia-me feliz a trabalhar na minha pátria, mas aqui não estou menos contente: afinal, o trabalho é o mesmo, é o mesmo patrão, o salário é igual”.
No dia anterior, pouco antes viajar, eu tinha visto no televisor o anúncio da Peugeot, o leão que mostra a sua juba, as suas perfomances. Imagem da sociedade ocidental, da sua força, da ânsia de galgar terreno, de “cilindrar” a todos. Menos de 24 horas depois, senti-me transtornado por esta imagem do missionário que escolhia a bondade e a presença desarmada do Evangelho. No meio da insegurança e do perigo, sentia bem que o lugar mais seguro da terra é no centro da vontade de Deus.
Evoco também Dom Hélder Câmara. Embora o considerasse agitador e incómodo, não convinha ao Governo brasileiro que ele sofresse um atentado. O arcebispo recusou a protecção policial, declarando que já tinha os seus seguranças.
– “Os nomes deles têm de constem nos registos oficiais. Quem são?” – pergunta-lhe um polícia.
– “O Pai, o Filho e o Espírito Santo” – responde Dom Hélder calmamente.
Uma noite prendem um pobre homem. Dom Hélder telefona para a esquadra da polícia: – “Está preso aí o meu irmão?” – “O seu irmão, Excelência?” – “Sim, apesar da diferença de nomes, somos filhos do mesmo Pai”. O funcionário desfaz-se em desculpas. Não entendeu que se tratava do Pai do céu…
Uma freira entrou num templo budista para rezar ao mesmo Deus a quem todos procuram. De repente, veio-lhe ao espírito a imagem do Crucificado: “viu” Jesus na atitude de quem envolve e abraça o mundo inteiro. Os braços divinos prolongavam-se encarnados nos braços de tantos cristãos, de tantos missionários. Um poeta chamou a Deus “um bosque de braços sem fim”…
Uma mulher prostituítda e marginalizada dizia radiante ao sair de um centro da Cáritas: “Pela primeira vez na vida recebi amor em troca de nada”.
Encontrara ali pessoas que sabem amar de graça, em troca de coisa nenhuma, sem prestar atenção às consequências daí resultantes para a própria vida”. Através delas, a “nova revolução” está em marcha: a “revolução do coração”, a “revolução da paz”, a “descida da cruz ” dos oprimidos, a dignificaçação dos pobres.
Há deuses em que não vale a pena acreditar: deuses inúteis, objecto de mera curiosidade, como os da mitologia, criados à nossa imagem e semelhança. Há deuses em que é perigoso acreditar: os ídolos opressores do dinheiro, do prazer, da ambição e do sucesso. Há deuses em que é doentio acreditar, porque reforçam os complexos e as manias: o deus do medo, dos escrúpulos, das neuroses. Há deuses em que é suspeitoso acreditar, porque estão ao serviço dos nossos interesses: os deuses que se compram com promessas ou se pagam com sacrifícios. Há deuses em que é penoso acreditar: o deus tenebroso e vingativo que anda de esferográfica na mão a anotar as nossas falhas, ou que se alimenta de vítimas, sangue, miséria, desumanidade.
Abílio Pina Ribeiro, cmf