O DIA EM QUE O CHIADO ARDEU

Muitas vezes me lembro dessa tarde triste de 25 de Agosto de 1988, quando o sol rompia a custo a espessa nuvem de fumo e eu contemplava a casa em que tinha morado durante uns anos, reduzida a um montão de escombros. Lá ficavam retratos de família, alguns objectos de estimação, e outros retalhos da alma.
Pensava igualmente em tantas pessoas que ganhavam o pão naquela zona e eram mais prejudicadas do que eu. Metia dó a Rua do Carmo, a rua “mais pública e frequentada da Corte”, como a descrevera Teodoro de Almeida. Faziam-me pena os gloriosos edifícios do Chiado, esse Chiado do qual Eça de Queirós murmurava outrora: “O que um pequeno número de jornalistas, de políticos, de banqueiros, de mundanos, decidir no Chiado que Portugal seja – é o que Portugal é”.
O Chiado, porém, devido ao descuido e à malvadez humana, já estava a arder desde há longos anos. Arranjos de mau gosto tinham substituído a nobreza das ruas; a procura egoísta do negócio roubara-lhes o aprumo e a dignidade. Se os lugares, como as pessoas, também têm alma, digamos que estava ameaçada a alma de Lisboa.
Mergulhado nestes pensamentos graves, fiquei de repente sem respiração, porque, ao derramar os olhos mais ao largo, verifiquei que a cidade inteira estava a arder – no fogo diários dos assaltos a pessoas e bens, no comércio e consumo da droga em pleno dia, no trânsito infernal, na construção desordenada e feia, na sujidade das ruas e dos prédios, no abandono de jardins e parques, na situação desumana dos hospitais e das cadeias.
Acendo a rádio e ouço que, pelo país fora, ardem serras e campos. E se “ler” as árvores é como ler a Bíblia, parece-me que, ao arderem elas, se queimam também um pouco as mãos de Deus e o encanto que me produzem as suas folhas verdes.
A humanidade inteira abrasa-se igualmente numa porção de terrorismos e de guerras, de violências e de ódios. Ardem pelo mundo, em piras, milhões de famintos, de imigrantes e de refugiados. As economias de bastantes países esgotam-se na combustão da dívida externa. A inocência das crianças e dos jovens queima-se no lixo da televisão e da internet ou na sofreguidão de ter e de brilhar. Estalam no fogo os mártires da justiça e da liberdade. Inflamam-se os políticos corruptos e os chupadores da miséria alheia.
De incêndio em incêndio, de desumanização em desumanização, a Terra já está queimada, embrutecida, esvaziada de conteúdo como as carcaças ocas do Chiado, e são fogueiras – senão escombros fumegantes – tantas escolas, famílias, empresas e comunidades.
Dá-me vontade de rir quando penso nos movimentos pacifistas, nas marchas de protesto contra as armas nucleares que podem, cedo ou tarde, atear e consumir a humanidade. Mas nem são precisas essas armas! Chega de sobra o aquecimento global provocado pelas toneladas de sujeira que lançamos para a atmosfera. Chega de sobra a exploração insensata das entranhas da terra ou o derrube das florestas.
O perigo maior não reside na bomba atómica ou na pólvora dos canhões. O perigo maior reside em seis mil milhões de idiotas que a todo o momento apertam o botão do próprio egoísmo, soltam as paixões como feras incendiárias.
Corro ao espelho. E vejo, com espanto, que a minha cara também arde. As mãos lembram dois tições acesos, trago fogo e cinza dentro do peito, tenho o coração em brasa e os olhos em labareda. Devido a isso, faltam-me braços disponíveis e cabeça fria para enfrentar devidamente o pesadelo das chamas que vitimam tanta gente.
As próprias lágrimas que derramo são lágrimas de fogo. Sem ternura suficiente. Demasiado ardentes e salgadas.
Mas, no dia em que o Chiado ardeu, também houve uma nota de beleza e, porventura, de esperança. Naquela tarde, devido à rarefacção da água atirada pelas mangueiras sob os raios do sol formara-se um arco-íris que delimitava a zona do incêndio entre a Calçada de São Francisco e o outro lado da Rua Garret. O Chiado ardeu. O Chiado foi reconstruído. E, com a boa vontade de todos, a Humanidade também o será.

Abílio Pina Ribeiro, cmf

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