“JUVENTUDE ACUMULADA”

Sabem os leitores onde passa a linha divisória entre a juventude e a velhice? Há jovens aborrecidos e enjoados apesar de toda a indústria do divertimento e há velhos que se não cansam de produzir e de ser curiosos.

Um jornal italiano publicou uma série de entrevistas com “jovens” de 90 e tantos anos. Um deles, o ensaísta Victório Foà (93 anos), queixava-se de ter perdido a vista, mas sentia-se tranquilo e continuava a interessar-se por três coisas: a mudança nas relações interpessoais, o futuro da informação e as novidades da investigação científica.

A escritora Suso Cecchi d’Amico (90 anos) dizia que, ao não poder dedicar-se ao desporto, lia muito e, assim, rebentavam-lhe como duma fonte ideias novas.

Miguel Ângelo Antonioni (92 anos), director de cinema, já que não podia falar, dedicava-se a pintar quadros de estilo surrealista.

Rita Levi Montalcini (95 anos), prémio Nóbel de medicina, confessava: “Perdi a vista e boa parte do ouvido, mas estou com sorte, porque tenho muitos colaboradores. Trabalho 18 horas por dia e durmo muito pouco”. Qual o segredo para não sentir o peso da idade? “Desinteressar-me da minha pessoa e interessar-me totalmente pelos problemas científicos e pelo futuro dos jovens”.

O maestro João Carlos Menotti (93 anos) ainda em 2004 encerrou os Festivais estivos de Spoleto, que fundara em 1957. Projectos para o futuro? “Dedicar a velhice a aprender. Agora pus-me a estudar filosofia. Ainda tenho muitas perguntas à espera de resposta”. “Se pudesse falar com o Papa, dir-lhe-ia que a arte – a arte criativa – talvez seja a melhor prova da existência de Deus”. E continuava: “Não receio a morte; sorrio-lhe”.

Micol Fontana, criadora de moda (91 anos), confessava: “Tenho um projecto em que estou a trabalhar: um museu da moda italiana. Espero que o Pai Eterno me conceda a graça de só partir no dia seguinte ao da inauguração”.

Mas chega de italianos. O filósofo Jean Guitton, da Academia Francesa, aos 87 anos, com uma lucidez e clarividência incríveis, fazia o balanço da sua vida plena no livro Um século, uma vida. A sua fecundidade era um espanto: no mesmo ano publicou O livro da sabedoria e das virtudes reencontradas e Últimas palavras; no ano anterior dera à luz O meu testamento filosófico. E a fonte só deixou de jorrar aos 99 anos.

Pelos vistos, descansar é coisa de velhos; não de “jovens” que ainda nem chegaram aos cem anos…

Entre os portugueses, quem pode esquecer Fernando Pessa, já prestes a entrar no clube dos centenários e ainda a pedalar na sua bicicleta ou a debitar crónicas cheias de frescura na televisão? Ou o cineasta Manuel de Oliveira, a criar maravilhas e a receber galardões, apesar da sua centena de Primaveras? Ou mesmo José Hermano Saraiva, com mais de duas carradas de anos, a percorrer o País de lés a lés e a remexer nos arquivos para desempoeirar a história de Portugal e a servir na televisão com gesto, arte e alma?

Mas como nem só as figuras importantes fazem a história, permitam-me evocar a Lurdes. Esta “jovem” de 92 anos deixou de conduzir, há dias: “O carro deu o berro, mas não vou substitui-lo. Não quero fazer mal a mim própria nem aos outros. Faz-me muita falta, porque se perde um tempo enorme nos autocarros”. Todos os dias visita o seu irmão entrevado, de 76 anos, e ajuda a sua cunhada: “Ontem gastei a tarde toda a passar a ferro”. Quem a quer ver é na casa de doentes e idosos: faz-lhes as compras e a comida, aconselha-os a “conviver com as suas limitações e dores”. Também colabora numa instituição de solidariedade: “De vez em quando querem me dar uma gorjeta. Zango-me e ameaço não voltar lá mais. Faço isso voluntariamente”. Peditórios da Cruz Vermelha, da Cáritas, dos Bombeiros, da Luta contra o Cancro, das Missões, contam sempre com a Lurdes. “A minha mãe já dizia: ‘Não sei que vida é a desta rapariga’. Casei-me e tive sorte, mas fiquei viúva muito cedo. Não ando de luto e vivo com alegria, procurando ajudar os outros. Levanto-me às seis e, antes de vir para a missa das oito, já deixei a casa em ordem, o almoço encaminhado e as escadas limpas. Assim, posso andar na rua até às dez. Sofro muito com dores nas pernas e nos joelhos, mas não paro. O futuro não me aflige: tenho a graça de Deus e Ele é grande”.

Sinto orgulho de pertencer a esta humanidade cheia de velhos sempre jovens. Tenho pena dos jovens que envelhecem antes do tempo. Dos que estão cansados de fazer nada. Dos que vestem de preto desde que lhes morreu o marido ou a esposa até ao fim da vida. Dos que perderam a capacidade de assombro e de jovialidade.

Uma pessoa é jovem, quando tem um ideal, um sonho, uma tarefa que, por serem maiores do que ela, a obrigam a esticar a alma para lá chegar. Quando vive cheia a maior parte do dia, e as horas de tensão e produção são maiores do que as horas de paragem e de sesta. Aquele que se reforma de viver, de criar, de sorrir, começa a morrer a partir desse momento.

Uma pessoa está viva quando lhe sobra vida para dar aos outros. Porque só há vida quando se reparte. Aquele que não ama, não auxilia, não empurra os demais, já vai indo pelo seu pé para o campo santo.

Uma pessoa está viva enquanto fizer da sua velhice uma “juventude acumulada”.

Abílio Pina Ribeiro, cmf

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