António Rosmini era um padre italiano, filósofo e teólogo, que nunca teve sossego. Ora vejam: primeiro, a novidade da sua linguagem e os fermentos renovadoras da sua doutrina, acenderam longas polémicas, das quais saiu maltratado.
Depois, lembrou-se de escrever um livro intitulado As cinco chagas da santa Igreja, e caiu em desgraça. Escreveu-o “aflito por ver o deplorável estado em que mergulhava a Igreja”. Só o deu à estampa ao cabo de 16 anos, porque “os ventos – dizia – não sopravam à feição”. Publicou-o em 1849, quando foi eleito Pio IX, que Rosmini pensava “destinado a imprimir à Igreja um novo impulso e a lançá-la por novos caminhos”. O título inspirava-se no discurso de Inocêncio III ao Concílio de Lion (1245), no qual o Papa comparava a Igreja a Jesus no Calvário e também a via rasgada por cinco chagas. A obra sabem aonde foi parar? Ao “Índice” dos livros proibidos.
Que feridas eram essas em que Rosmini pôs o dedo a ponto de atrair assim os raios da censura?
A primeira, a chaga da mão esquerda da Igreja, era “a separação entre o povo e o clero no culto público”. A missa celebrava-se em latim e o povo ficava assim… Durante ela, o padre virava as costas à assembleia. Esta, segundo Congar, limitava-se a dizer amen no fim das orações e a meter a mão no bolso na altura do ofertório. O Concílio Vaticano II alteraria esta estado de coisas. Nas Eucaristias de agora já não se ouve aquele barulho de orações e devoções que sufocavam a vida. No centro está a celebração do grande Mistério, com sobriedade e clareza.
Rosmini lamentava que o povo não fossse instruído por meio duma “pregação evangélica”, “plena e vital” e, por isso, nada percebesse dos símbolos litúrgicos. O remédio quem o devia aplicar? O clero, naturalmente.
Mas aparece aqui a chaga da mão direita: “a insuficiente formação do clero”. “A pregação e a liturgia foram, nos melhores tempos da Igreja, as duas grandes escolas do povo cristão”. Hoje, porém, o clero está desarmado. A formação que recebe nos Seminários é de baixo nível. “Pequenos livros” e “pequenos mestres” formam “pequenos padres”. Em vez de comunicarem “a palavra viva de Cristo”, só comunicam “a palavra humana e uma palavra morta”.
Não sei se, hoje, Rosmini concordaria com esta pergunta da Revista “Sal Terrae”: “Estaremos a caminho dum clero analfabeto?” Mas decerto recomendaria a ascese do estudo. Não basta a bagagem cultural que se adquire com a leitura de jornais e revistas, ou com horas e horas gastas diante da televisão ou navegando à toa na internet. Isso da “era do vazio”, do “império do efémero”, do “fragmento”, do “pensamento débil, também se aplica aos padres.
E, mais uma vez, quem deve remediar a situação? Segundo Rosmini, o Episcopado. Mas tem de ser um Episcopado “unido, e não partido em bocados, dividido entre si”. Terceira chaga, a chaga do lado da santa Igreja: “A desunião dos Bispos”. Rosmini referia-se à falta de encontro e diálogo entre eles. Hoje falaria de pastoral de conjunto, redistribuição das forças vivas eclesiais e de coisas parecidas.
A chaga do pé direito da Igreja é “a nomeação dos Bispos pelo poder laical”. No tempo de Rosmini, eram escolhidos em nome de amizades, favores, interesses, estratégias políticas. A Igreja há-de ter as mãos livres para escolher os melhores, depois duma consulta ampla e séria ao povo de Deus: “padres conhecidos, amados e queridos daqueles que devem orientar”.
A chaga do pé esquerdo, a última, é “a sujeição dos bens eclesiásticos”: a Igreja depender do Estado para subsistir. “A Igreja primitiva era pobre, mas livre… Não prestava vassalagem, não recebia protecção nem admitia tutela”. Rosmini advogava uma administração rigorosa e transparente dos bens da Igreja. Não andava longe do amor preferencial pelos pobres e do empenho social dos cristãos, que seriam bandeiras do Vaticano II.
Escreveu As cinco chagas da Igreja “para edificar e não para destruir, para unir e não para dividir”.
Tinha um olhar penetrante como os profetas. Queria o diálogo com o mundo e a reflexão da Igreja sobre si própria, a sua natureza e a sua missão. Como Newman, apercebia-se do peso e das contradições duma Igreja “sentada” no trono, parada, e queria vê-la a caminhar ao ritmo do Espírito. Mais de 100 anos antes do Concílio Vaticano II declarar que a Igreja precisa de contínua reforma! Este foi o seu “crime”.
“Segundo os prudentes deste mundo – escreveu – tudo vai bem. Segundo outros ainda mais prudentes, é preciso que os católicos não tenham a temeridade de falar: convém guardar perfeito silêncio para não levantar ondas.
Tal tipo de prudência é a arma mais terrível dos que minam a Igreja: minam-na surdamente. Quem denuncia tal situação causa turbulência, é considerado perturbador”.
Há, por isso, quem prefira “adular”; quem goste muito de bater a massa para que ela inche.
Rosmini foi sempre um modelo de serviço eclesial prestado no silêncio, na humildade e na obediência a toda a prova. Fundador do Instituto da Caridade, incutia aos seus irmãos, por activa e passiva, a devoção à Igreja. Amigo de Papas, acompanhou Pio IX no seu exílio em Gaeta e Nápoles. Era sábio e santo. Mas não se livrou dos fulminantes os raios da censura. Ele há cada chaga!
Abílio Pina Ribeiro, cmf