Há duas classes de pessoas: as que escondem as suas doenças por vergonha e as que revelam as suas doenças para que outras se não envergonhem das próprias limitações.
O ex-presidente americano Ronaldo Reagan, doente de Alzheimer, pertencia ao segundo grupo: antes de entrar no túnel sem saída daquela doença escreveu uma carta aos seus concidadãos, animando-os a seguir em frente com entusiasmo.
O famoso cardeal Martini visitou os doentes dum hospital de Milão que sofrem da mesma enfermidade que ele: o mal de Parkinson. Um doente perguntou-lhe: “Como é que faz quando os pés se lhe pegam ao chão? Eu, para me pôr em movimento, escuto a marcha de Redetzky. E você?” – “Eu prefiro Mozart: une ritmo e melodia. Ajuda-me a caminhar e a arrumar o quarto”.
À pergunta de como que tinha descoberto a sua doença, respondeu: “Não fui eu que me dei conta, mas sim outras pessoas: há dez ou doze anos fizeram-me notar que, ao falar em público, havia movimentos do meu braço que não conseguia dominar”.
A seguir confessou com simplicidade a sua convivência com os incómodos da doença: tomar remédios de três em três horas, dieta sem proteínas durante a manhã, sono interrompido das dez da noite às quatro da madrugada. Ainda consegue trabalhar bastante, mas precisa de repousar com frequência. O médico mandou-lhe dar pelo menos cinco mil passos cada dia e ele procura fazê-lo rigorosamente, enquanto vai rezando: “Não para pedir a minha cura; mas uma oração de intercessão que desagua no rio da oração de toda a Igreja”.
Quando era arcebispo de Milão e notável escritor e conferencista, toda a gente falava das suas iniciativas e da sua rica personalidade. Agora vai mais longe, não se inibindo de mostrar a sua fraqueza e dimensão espiritual através dum corpo humilhado pela doença.
Martini faz-me lembrar outro cardeal: André Maria Deskur. Quando João Paulo II lhe impôs o chapéu cardinalício, em 1995, Deskur vinha numa cadeira de rodas. Este polaco tinha sido anteriormente Presidente da Comissão Pontifícia para os Meios de Comunicação Social. Tivera ao seu encargo, pois, a difusão e o desenvolvimento dos “meios ricos” da Igreja: rádios, televisões, jornais católicos espalhados pelo mundo inteiro. No entanto, o Papa não focou o notável desempenho do Purpurado na gestão daqueles “meios ricos”. Realçou, antes, o valor dos “meios pobres”, o valor do sofrimento que o atingira tão gravemente.
Na missa que o Prelado celebrou ao tomar posse da sua igreja titular, numa cadeira de rodas ao pé dum altar mais baixo do que o habitual, teve de ser ajudado para erguer a Hóstia
Que paradoxo! O ex-Presidente da Comissão Pontifícia para os ”meios ricos” marcado com o sinal dos “meios pobres”!
E quem não se lembra de João Paulo II? O actor italiano Vittorio Grassman declarou acerca dele: “Gosto mais do Papa quando está prostrado numa cama do hospital Gemelli do que ao vê-lo entre nuvens de incenso, com paramentos dourados, a música a todo o volume, as reverências e os vivas da multidão, na Praça de São Pedro. Na Praça, vejo-o distante, ao passo que, no hospital, sinto-o bem perto, é como eu, e… então faz-me pensar”.
Teria João Paulo II exercido tão eficazmente a sua missão, atraído multidões, sem a fé, a oração, o sofrimento que marcou a sua vida? O atentado de 13 de Maio de 1981 iluminou-o: “Vi com maior clareza a minha vida à luz das palavras que falam do grão de trigo que tem de morrer para dar fruto”.
Ele que ensinou tantas pessoas a viver, ensinou também muitas a morrer. Quando é que foi mais útil: ao ensinar como se vive ou ao mostrar como se morre? Foi mais apóstolo através dos “meios ricos” (audiências, documentos, viagens, discursos) ou através dos “meios pobres” (a dor, a enfermidade e a própria morte)?
A grandeza interior duma pessoa manifesta-se verdadeiramente quando as aparências exteriores se convertem numa capa que encerra um tesoiro que só Deus conhece.
Por isso, às vezes, fico-me a pensar num episódio bíblico cheio de significado e de beleza: o combate de David contra Golias. David desafiava o gigante: “Deus vai entregar-te nas minhas mãos e toda a gente há-de saber que não é com a espada nem com a lança que nos salvamos. Esta guerra é do Senhor”.
Golias, um guerreiro possante e experiente, armado até aos dentes com espada, lança e azagaia, foi vencido pelo pequeno Golias que, nesse torneio, o enfrentou sem armadura, só com um varapau e cinco pedras.
Abílio Pina Ribeiro, cmf