UM “DESGRAÇADO”, POR FAVOR

Um amigo meu perdidinho por café e que, por mal das suas maleitas, nem o pode cheirar, quando entra no bar da esquina pede maliciosamente “um desgraçado”. Achincalha desse modo o miserável “descafeinado” que, para ele, não tem sabor nem graça.

Hoje em dia, para evitar o excesso de calorias ou seja pelo que for, muitos filhos de boa mãe preferem os artigos “light”, deslavados, desnatados, meias tintas. São contas do seu rosário.

O pior é quando olhamos à nossa volta e vemos também homens e mulheres “light”, desenxabidos, moles, incapazes dum acto forte de vontade, fugindo a sete pés de qualquer dificuldade e sacrifício. Eu próprio chego a duvidar, por vezes, se nas minhas veias corre sangue ou água chilra, tão pouco aço tenho, tão alérgico me sinto à prática das virtudes fortes, ao querer é poder, ao gesto heróico, à resistência à dor.

Um colega meu de estudos e professor de sociologia escreve que “a juventudo actual, se não toda, pelo menos grande parte, acusa uma “froixidão vital”, uma espécie de fraqueza interior que faz com que, na hora de enfrentar situações custosas ou de tomar opções radicais e exigentes, muitos jovens dêem a impressão de que querem e não podem”.

Se isto for verdade, não o podemos aplicar somente ao universo juvenil. A dificuldade para assumir compromissos duradoiros, a tendência a seguir a lei do mínimo esforço ou a baixar os braços antes de lutar, a fuga de tudo o que pede austeridade e renúncia, a busca do prazer imediato, são posturas generalizadas e difusas que os jovens aprendem, deduzem do comportamento dos adultos. Só que estas atitudes nos jovens tornam-se mais agudas, volcânicas, extremistas.

Receio que estejamos a criar uma geração de crianças birrentas que querem comer, beber, brincar, ter tudo (“Quero todos os brinquedos da televisão”, pedia um menino ao Pai Natal), imediatamente, agora e já; e que se não podem saciar de imediato os seus instintos, pateiam, chiam, berram, ameaçam, até o conseguir. Há quem fale da “geração do iogurte”, alimentada a iogurte e inconsistente como ele.

Enchemos os filhos de mimos, “para que não passem pelo que nós passámos”, cultivamo-los como bananas, não lhes impondo nada “que lhes desagrade, para evitar complexos e repressões”. E depois admiramo-nos de que sejam raros como os melros brancos os jovens que diferem a relação sexual para depois do matrimónio ou que alguns deixem os estudos “porque têm pressa de ganhar a vida”, isto é, de possuir dinheiro próprio para gastar e gozar.

Mas nada de lhes atirarmos a primeira pedra, não vão eles responder-nos como os jovens revolucionários de Paris, em Maio de 1968: “Enchestes-nos a barriga, mas não nos destes razões para viver”.

O romancista Alberto Morávia denunciava com aspereza e, quem sabe, com alguma razão: “As duas chaves da nossa época são o prazer e o dinheiro. O resto são histórias”.

Um espírito pragmático, utilitarista, ansioso de chupar todo o sumo à vida infectou a sociedade contemporânea. “Não deixes para amanhã o que podes gozar hoje”; “não esperes em revelações e promessas que não estejam ao alcance da mão” – este parece ser o lema de muitos filhos de boa mãe.

Razões para viver é o que nos falta. Quando uma pessoa tem ideais e frequenta o futuro, sabe imolar o imediato e provisório para atingir o decisivo e duradoiro. Os atletas sujeitam-se a duríssimos treinos para subirem ao pódio ou vestirem a camisola amarela: “Privam-se de tudo, por uma efémera coroa de louros” – observava São Paulo. As misses, para manterem a linha e ganharem concursos, aguentam horríveis dietas e dolorosíssimas operações plásticas. Quando há projecto, expectativas, sonho, trabalha-se com ardor e paixão, sofre-se para lá chegar. O que se não pode é querer o perfume sem cultivar as rosas, recuperar a saúde rejeitando os remédios, porventura amargos, ou vencer a maratona e não querer esforçar-se nem suar. “Os calos adornam mais as mãos que os anéis” – reza um provérbio estónio.

Por isso, tenho pena dos homens e mulheres que têm uma alma descafeinada, “light”, anémica, enfermiça. E levam, por isso, uma vida “des-graçada”, que o mesmo é dizer: sem nervo, sem pinta de graça.

Abílio Pina Ribeiro, cmf

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