UMA MOEDA, UMA SAUDAÇÃO E UM SORRISO

Teresa de Calcutá quis, um dia, alargar a sua benemérita obra à China. Começou a dar as voltas necessárias, mas não imaginam quantas “muralhas da Cinha” teve de atravessar sob a forma de papelada e burocracia. Estava até disposta a renunciar a catequeses e doutrinas: deixassem-lhe praticar somente a caridade.

Os chineses não recusavam a autorização abertamente. Não seria de bom tom nem de boa política. Mas argumentavam cheios de artimanha: “Você dedica-se a tratar dos miseráveis, dos pedintes, dos sem abrigo. Só que, na China, não há disso, Madre Teresa. Toda a gente tem casinha, tem doutor, tem assistência, tem a sua malga de arroz. Ninguém morre de frio nem de fome, não faltam creches nem escolas. Bem haja, mas aqui não é precisa”.

Noutros países acontecia justamente o contrário: “Venha depressa, Madre Teresa. Precisamos de si. Há multidões sem uma côdea, sem um tecto, sem uma palavra, sem um carinho”.

Contudo, nem sempre é fácil distinguir o proceder dos inefáveis chineses e o de outras excelentes pessoas.  Entrei, um dia, numa igreja de Lisboa por entre duas filas de andrajos, de pernas chagadas, de lamentos fadistas. Era domingo, lia-se a multiplicação dos pães. Ocasião esplêndida para vincar, por exemplo, que a dimensão social constituía um dos sinais da missão messiânica de Jesus. Estava escrito que o Messias daria vista aos cegos, faria andar os aleijados, sararia os leprosos. O preceito do amor, a fraternidade humana que brota da filiação divina, materializa-se em compromisso social, em folha de serviço. Cada cristão, como o rapaz do evangelho, há-de trazer a sua mão-cheia de trigo para saciar a fome que há no mundo. E fome não só de pão, mas também de palavra, de cultura, de auto-estima, de sentido da vida.

O celebrante falou da fome. Mas para declarar, alto e bom som, de modo a ouvir-se fora de portas: “Esses Lázaros que nos estorvam a passagem são falsos mendigos, não precisam de esmola. Eles só querem para a droga e para os copos; eles que trabalhem, que suem como as pessoas de bem”.

Confesso ter caído, bastas vezes, na armadilha de pedintes burlões. Enganaram-me, e de que maneira! Antes isso, porém, que deixar-me ir nas tretas da gente de papo cheio que, em nome da luta pela justiça, esquece o amor de cada dia. Gente que anestesia a consciência com teorias brilhantes: que a batalha mais urgente não é socorrer os indivíduos, mas alterar as estruturas; que a esmola denigre tanto quem a recebe como quem a faz; que mais vale ensinar a pescar do que dar um peixe; que é preferível, em vez de broa, repartir fermento.

Sobre umas areias de verdade passeia aqui um erro enorme como um elefante; pretende-se transformar a humanidade deixando morrer o ser humano concreto. Jesus, o mestre do verdadeiro humanismo, não olhava tanto lá para o alto, que esmagasse as formigas no carreiro. Vinha mudar os destinos do universo, mas acariciava as crianças, chorava por um amigo, pensava no comerzinho dos seus ouvintes.

Nos países desenvolvidos, estamos a caminhar para uma sociedade dualista: dois terços da população tendem para um nível de vida cada vez mais elevado – transportes mais rápidos e cómodos, melhores escolas e hospitais, uma existência mais folgada -, enquanto mais ou menos um terço dos habitantes viverá cada vez pior. São os “novos pobres”: os excluídos, os sem abrigo, os imigrantes ilegais, os desempregados de longa duração, os drogados, os doentes de sida, os camponeses empobrecidos…

“Sempre haverá pobres no meio de vós” – disse Jesus. Esta frase levou muito boa gente a rasgar as vestes e a atirar pedradas: “Cá está a Igreja pregar resignações e a esconder-se atrás das folhas do Evangelho e da caridadezinha! Deveria incitar-nos, antes, a defender o Estado social, para ficarmos livres de este peso, de esta obrigação de pensar nos outros. Nos pobres deve pensar o Estado; a ele é que pertence resolver os problemas, dar assistência aos mais desprotegidos. Nós pagamos os impostos e chega”.

Jesus constatava simplesmente um facto que a experiência nos põe diante dos olhos: por mais que se promova a função social do Estado, sempre haverá quem nasça em berço de palha, quem não seja capaz de singrar na vida ou quem não tenha sorte. Sempre haverá pessoas que estão “de sobra” e que são atiradas para as margens esquecidas do progresso.

Há que lutar por uma sociedade mais justa, com certeza, uma sociedade que ofereça oportunidades iguais a toda a gente. No entanto, uma sociedade humana sem caridade será como um ser humano sem coração. O Estado pode garantir a todos os idosos e doentes o dinheiro e os bens materiais necessários para sobreviverem; mas, se ninguém for ao encontro de outras necessidades e carências deles, morrerão de solidão e de pena. “Nem só de pão vive o homem…” Também vive da palavra, da companhia, dos afectos, da ternura. O Estado pode fornecer a todos os inválidos uma cadeira de rodas a que têm direito; mas, se ninguém os ajudar a sentar-se nelas, de nada lhes servirão esses trastes intúteis. Já diziam os Romanos: Summum ius, summa iniura (“Suma justiça, suma injustiça”). A justiça estreme, isolada, redunda em atropelo, em verdadeiro insulto ao ser humano.

Lembro-me de um mendigo que pedia três coisas: “ uma moeda, uma saudação e um sorriso”. E ele mesmo ia espalhando boas-tardes como quem atira flores ou descargas de ternura.

O primeiro que se nos pede que tenhamos coração. Um coração parecido ao daquele homem a quem o califa Aarum-el-Raschid perguntou: “Qual dos teus filhos é o preferido?” O homem respondeu: Tenho preferência pelo mais pequeno… até que seja crescido; pelo que está fora… até que volte para casa; pelo que está na cadeia… até que fique livre; por aquele que sofre… até que lhe passe a dor ou a tristeza”.

Cada um de nós pode dar aos outros, sobretudo aos mais necessitados, parte do seu tempo, do seu saber, do seu carinho, da sua presença.

Uma senhora, que não trazia nada no bolso, deu um beijo a um menino que lhe pedia esmola. Instantes depois, a criança apareceu de novo, intercendo pelo seu irmão mais novo: – Também dá um beijo a este?

É que nenhuma definição de amor vale tanto como um beijo.

 

Abílio Pina Ribeiro, cmf

(FOTO: Jacqueline Munguía)

 

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