“Cada pessoa – dizem os italianos – é uma palavra de Deus que nunca se repete”. Cada pessoa é uma surpresa, uma novidade, uma singular dádiva para o mundo. Cantam os poetas que não há duas auroras iguais, que Deus não faz as pessoas em série, antes cria os corações um a um. O filósofo Unamuno exprime-se de maneira mais prosaica, mas não menos vigorosa: “Cada um é cada um, e cada um tem as suas cadaunadas”.
Mas serão as coisas efectivamente assim? A dúvida resulta deste facto que nos entra pelos olhos: a humanidade actual parece-se mais a um rebanho de borregos que a uma comunidade de seres diferentes. Os meios de comunicação vão achatando os espíritos como um rolo compressor; as modas fazem o resto. Julgamos ser livres; mas, à força de vermos todos as mesmas imagens, ouvirmos as mesmas notícias, bebermos os mesmos comentários, acompanharmos as mesmas piadas enlatadas, engolirmos a mesma comida de plástico, empregarmos todos o mesmo calão, os mesmos balidos – estamos sujeitos a uma autêntica lavagem de cérebro. Há cada vez menos gente a exercer o direito à diferença, à indignação, a ter um pensar próprio, autónomo, legítimo, um agir independente.
Curiosamente, no entanto, o primeiro traço, o mais característico, do mundo moderno é a subida do indivíduo. Durante séculos o ser humano viveu no anonimato, perdido no fundo das instituições económicas, políticas e religiosas. No século XVII o filósofo Descartes resumiu bem o giro cultural que se estava dando: “Penso, logo existo”. Ou seja, não tenho por que aceitar o que me dizem só porque alguém o disse ou vem sendo admitido por tradição, ou porque mo impõe a sociedade, mo ordena a religião, porque sempre se acreditou e foi assim. Convém tudo submeter ao discernimento, à crítica; aceitar unicamente o que entendes ser coisa boa, benéfica para ti e para todos. “Atreve-te a pensar por ti mesmo” – seria o lema da pessoa ilustrada.
Ninguém diga que daí não resultaram coisas positivas, como o pluralismo e o humanismo, por exemplo.
Quando alguém pensa por sua conta, surge a diversidade, multiplicam-se os pontos de vista, as maneiras de interpretar a vida e os costumes. O mundo fica mais colorido e mais rico. Segundo Urs von Balthasar, “a verdade é sinfónica”, faz-se das parcelas de verdade que todos nós possuímos. Quem não prefere uma biblioteca de mil livros diferentes a uma de mil volumes repetidos?
Vivemos numa sociedade raivosamente humanista, numa terra de seres humanos ciosos da sua autonomia e da sua liberdade. Nos últimos quatro séculos produziram-se declarações explêndidas sobre os direitos humanos; a democracia afirmou-se como espaço adequado para o exercício das liberdades. A preocupação humanista tem a sua versão peculiar no cultivo do corpo, que parte nossa é, e na relevância da felicidade e do prazer.
Bem sei que nem tudo são rosas. O pluralismo pode ser um bom correctivo contra posições fanáticas e dogmatistas; mas se deixarmos a cada pessoa determinar o que é bom e o que é mau, não cairemos no relativismo a respeito de qualquer convicção que pudesse ser estável? E, de facto, a falta de confiança em valores absolutos, a negação da transcendência não se vai acentuando? E a superficiliadde – gozar o dia a dia, “curtir” o momento presente – não se instala como modo de estar no mundo?
A exigência humanista leva as pessoas a sair do anonimato, a activar a sua consciência e os seus talentos, a defender os direitos humanos, a cuidar do seu corpo e desfrutar de tantas coisas boas que a vida lhes oferece. Na satisfação, porém, desse justo reclamo muitas vezes se dá o narcisismo: o homem e mulher cada vez mais curvados sobre o próprio “eu”, incapazes de amar alguém fora deles mesmos, isolados na sua própria terra, achatados na sua transcendência e sem nada de sagrado verem nem respeitarem nos outros? O individualismo, esse projecto de vida à magrem do próximo, não estende a sua asa negra sobre a nossa sociedade?
Longe pois de mim a ingenuidade de considerar respiráveis todos os ares do mundo moderno, de enxergar na nova cultura apenas flores bondade. E quero sublinhar aqui uma das raízes das nossas desgraças: o termos invertido a fórmula de Descartes. Para muitos dos nossos contemporâneos parece que seria mais exacto afirmar: Não penso (divirto-me, consumo, conformo-me, estonteio-me diante dos meios de comunicação), logo existo.
Abismado perante a fragilidade humana, dizia Pascal que o homem é uma cana, bem fraca, mas pensante, e, por isso, mais resistente e mais nobre que o universo inteiro. Cana pensante. E teimamos em fazer dele uma cana ao sabor e capricho do vento!
Uma pessoa que não pensa converte-se em descampado varrido por todas as modas, conformismos, ideologias e interesses mais diversos. E temos então o ser humano manipulado, instrumentalizado, convertido em boneco. O homem produtor, consumidor, televisionário, substitui o homem consciente, reflexivo. Há quem pense por ele. Quem escolha em lugar dele. Quem decida em sua vez. Quem lhe chupe os miolos. Não compara a Bíblia tais humanos aos animais que são abatidos?
“Quem salva a pessoa de cada século – escreveu Chesterton – é esse grupo de pessoas que se opõe aos seus gostos”. Esse punhado de homens e mulheres que recusam perder-se no rebanho, têm ideias próprias a alumiar-lhes a vida e se dispõem a subir ladeira acima.
Abílio Pina Ribeiro, cmf