PALAVRAS “FALADAS” E PALAVRAS “FALANTES”

Ouve-se dizer que a gente de hoje é muito mais sincera que a de tempo idos. Tenho as minhas dúvidas. Acho que se confundem duas coisas: sinceridade e espontaneidade. Uma fulana queixava-se de que não gostavam dela, porque “era sincera, dizia as verdades”. Dizia tudo o que lhe vinha à cabeça, sem olhar a modos nem maneiras. Dava rédea solta a este bicho perigoso que é a língua. Era sincera? Não, era espontânea. Mais espontâneas do que essas pessoas só os pássaros ou os cães na rua.
A sinceridade é a espontaneidade regulada pela prudência e pela caridade. Aprendi de meu pai que “nem tudo o que se sabe se pode dizer. Nem tudo o que apetece se pode fazer”.
Sinceridade vem do latim: “sine cera”, sem cera. Os romanos escreviam em tabuinhas enceradas, e, no teatro, usavam máscaras feitas de cera: não “sinceras”. A sinceridade tem a ver com transparência, clareza e, simultaneamente, com elegância, franqueza, honradez, integridade, coerência.
O escritor e jornalista italiano João Mosca aconselha a que evitemos afirmações categóricas: ‘Comigo é pão pão, queijo queijo’; ‘Sou homem dum só parecer: antes quebrar que torcer’; ‘Só tenho uma palavra’; ‘Não há dinheiro que me compre’. “Frases como estas cobrem-nos de ridículo, porque está provado à evidência que, na república da Itália, não há ninguém que apresente tais qualidades”. E terminava com ironia: “Os homens são sempre sinceros. O que sucede é que vão mudando de sinceridade”.
Há muitas pessoas que só enchem a boca a falar de rigor, honestidade, mas fazem da coerência uma batata e da traição uma ferramenta de trabalho. E isso não acontece apenas na quintarola dos políticos. Se os telemóveis revelassem as petas e as patranhas que eles ouvem! Se houvesse um detector de mentiras quando se lavram contratos, juras de amor e até promessas sagradas! Se o sim e o não pudessem corar de vergonha! “Se as mentiras se dissessem em latim, haveria muitos latinistas”- diz-se na Dinamarca.
Certas palavras nem sabem de que terra são. Dizia alguém que sempre que uma virtude deixa de agradar, muda-se-lhe o nome. Chama-se liberdade de expressão à difamação e à calúnia, diálogo à murmuração e à crítica negativa, sentido de humor à ofensa, frontalidade ao insulto, fome de justiça à vingança e à inveja, amor ao egoísmo e à luxúria, prudência ao silêncio e à cobardia… A soberba recebe o nome de auto-estima; a desobediência, o de personalidade; o cinismo, o de esperteza; a ira, o de temperamento. A gula é fome, na juventude; apetite, na idade madura; gastronomia, na velhice.
A mania de maquilhar os defeitos ultrapassa todos os limites. Nas entrevistas à gente famosa, quando se faz uma pergunta sobre as suas misérias, o entrevistado atribui a si próprio “um excesso de virtude” ou afirma que o seu maior defeito é “a sinceridade”, “acreditar de mais na bondade alheia”, “deixar-se levar pelo coração” ou “só pensar nos outros”.
Um cantor declarava, com o ar mais sério deste mundo, que o seu maior defeito era o “orgulho” e a sua maior virtude a “humildade”.
Ninguém assume, mesmo quando o próprio vento o sabe, que é um autêntico “javardo”, um “corrupto”, ou que tem os sete pecados capitais e uma bicharada interminável de pecados provinciais, como dizia alguém.
Em tempos que já lá vão, as pessoas reconheciam-se pecadoras, batiam com a mão no peito e, se eram cristãs, ajoelhavam perante um confessor. Hoje muita gente perdeu a noção de pecado e nem sente precisão de lavar a sujidade. Há mesmo quem se gabe de aventuras e pecados (que por vezes nem comete), como se de grandes façanhas se tratasse. Até aí chega a parolice, o despudor, a sem-vergonha.
Um filósofo do século XX, Merleau-Ponty, distinguia entre “palavras faladas” e “palavras falantes”. As primeiras são palavras cansadas, desacreditadas, sem peso, vazias. Receio que a sinceridade, a honestidade, a honestidade, a boa educação, pertençam a esse grupo. “Palavras de oiro são seguidas, muitas vezes, de acções de chumbo” – reza um provérbio holandês.
Precisamos de palavras falantes, respeitáveis, luminosas, vivas.

Abílio Pina Ribeiro, cmf

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