A BARCA DA IGREJA

Da Igreja se dizem, disseram e continuarão a dizer imensas coisas, por vezes altamente ofensivas. Certamente, há motivos de sobra para uma pessoa se escandalizar e rasgar as vestes. Quem se chega às margens desse rio sem o desodorizante da fé bem pode tapaz o nariz. Alguns amigos de fora até se admiram de continuarmos a apostar numa Igreja tão caudalosa de maldades, hipocrisias, arranjos humanos, desfalques espirituais e malignos odores.
E não é que eu sinto orgulho de pertencer a esta querida e pobre Igreja? Primeiro, porque estou longe de ser eu próprio um fio de água transparente.
Em seguida, porque a considero mãe e até me babo todo a contemplá-la jovem como a esperança e velhinha como a sabedoria, cheia de rugas e também de bondades, sabedorias e encantos.
Por vezes dou comigo a balbuciar como o grande leigo cristão Van der Mersch: «Nunca me saciarei da Igreja». Ou exulto mesmo com o velho Orígenes: «A Igreja arrebata-me o coração. Ela é a minha pátria espiritual, a minha mãe e os meus irmãos».
Na verdade, ela entrega-me, bem vivo e maravilhoso, o Jesus de Belém, das Bem-aventuranças, da Última Ceia, do Calvário. Gerou uma legião magnífica de heróis e de santos. Salva-nos, apesar das suas prestacções inadequadas, incoerências, lentidões e atrasos. Por isso, «agarro-me a ela como a árvore ao chão».
Importa viver a fé como fonte de liberdade, coragem, fidelidade e consciência crítica. Os que reduzem a fé a um salvo-conduto para o conformismo e a passividade são «rafeiros» ou «lacaios», não filhos legítimos da Igreja – dizia, na sua linguagem veemente e rude, o Padre Joaquim Alves Correia.
Da Igreja como «casta meretriz» falaram pessoas tão insuspeitas de infidelidade e heresia como Agostinho, Hipólito, Hilário e, recentemente, Urs Von Balthasar. Os maiores críticos da Igreja não foram os seus inimigos, foram Jerónimo, Bernardo, Catarina de Sena, Tomás Moro, Henrique Newman: os seus melhores filhos. A contestação viam-na eles como uma medicação séria, marcada por uma sede de bem e por uma visão lúcida das coisas. Viviam, por isso, a fé com alegria e sofrimento ao mesmo tempo.
Mas não se continue a afirmar, com insensatês e crueldade, que «Jesus nos salva apesar da Igreja». Equivaleria a dizer que «o Verbo encarnou apesar da carne». Não, senhor; encarnou com todas as consequências. E uma delas é, sem dúvida, a complexidade humana. Não abraçou o pecado, mas aceitou a complicação, a burocracia, as garatujas, as tolices e misérias humanas.
Por muito santa e «divina» que seja uma instituição, dessa complexidade não se livrará jamais. Acolher uma Igreja na qual nem tudo nos agrada equivale a um acto de fé na encarnação do Filho de Deus. Não me escandalizo das fraquezas da Igreja, porque também me não aflige, antes me enternece, a fragilidade de Jesus no Natal e da Paixão.
Dedicar-se à observação amorosa da Igreja e manter-se numa constante vigília de pureza a respeito dela, não vem daí qualquer mal ao mundo. Desde que não pretendamos ser mais papistas que o Papa nem mais cristãos que Jesus Cristo!
Uma pessoa não acredita apesar da Igreja, mas por meio de la, do mesmo modo que acreditamos em Jesus, Filho de Deus, não apesar da sua Encarnação, mas por ela. Aquele corpo estremecido e suado era – é – o Corpo de Cristo.
Cada vez acho mais acertadas as considerações da norte-americana Flannery O’Connor, escrevendo a um amigo: «Tu julgas a Igreja unicamente pelo seu elemento humano, por católicos sem imaginação e meio-mortos… O milagroso é que a doutrina da Igreja se mantém intacta por meio de tais pessoas e apesar delas. A natureza não é fértil em génios e a Igreja vai-se arranjando com o que a natureza lhe dá. Aos onze anos encontrei um sacerdote idoso que me chamou herege quando o interroguei sobre o evolucionismo; mais ou menos na mesma altura Teilhard de Chardin encontrava-se na China, a investigar o “homem de Pequim”…
A Igreja é a única instituição que tornará suportável o mundo terrível que aí vem; o único que torna suportável a Igreja é que ela, de certa forma, é o Corpo de Cristo e que de Ele nos alimentamos».
Não se pode separar, na Igreja, o elemento divino e o barro humano, o terreno e o celeste, o temporal e o eterno, o que é perfeito na mente de Cristo e o que se pode aperfeioçar pela parte que nos toca. Não devemos soltar nenhum dos cabos.
Somos da mesma família, consanguíneos de pecadores e pecadores nós próprios. A despoluição do grande rio começa pelo afluente que é cada um de nós. Mantemos a Cidade limpa varrendo cada um à sua porta.
Porque não faz mal contestar a Igreja quando a amamos: faz mal contestá-la considerando-se fora, porque se é inocente e puro. Podemos censurar o pecado e as sujeiras que nela existem, desde que sintamos também nós necessidade da lexívia da conversão..
Mais do que espectadores da Barca de Pedro, somos passageiros e remadores. Espectadores culpáveis, dizia Newman. Culpáveis dos males que nela existem nela, porque abundam em nós. E responsáveis pela sua navegação.

Abílio Pina Ribeiro, cmf

Start typing and press Enter to search