PONTOS DE LUZ E DE ESPERANÇA

Já contei que, um dia, vi a morte a poucos metros de distância, sob a forma dum carro cinzento-escuro que se atravessou na minha frente.
Mais do que pelas dores, chorei de raiva por ver estragada a festa de família, que era o motivo da viagem. E raiva ao pensar que o excesso de velocidade e as manobras perigosas não fazem doer a consciência das pessoas como outros delitos contra a vida, própria ou alheia.
Nos dias de hospitalização e convalescença de quatro cirurgias, notei que a solidariedade não é palavra oca. Senti o vigor e a ternura, a competência e o desvelo de médicos e enfermeiras. Mensagens e visitas chegaram de muitas partes como um bálsamo.
Andava a ler as teses de Hans Kung, uma das quais soava de este modo: “Ser cristão significa viver, agir, sofrer e morrer como verdadeiro ser humano, seguindo a Cristo neste mundo de hoje: sustido por Deus e disposto a ajudar as pessoas, na felicidade e na desgraça, na vida e na morte”.
O nosso tempo – diga-se o que disser – está cheio de gente que vive e se desvive pelo próximo. Na política e na escola, no sindicato e na acção social, na família e na oficina, são incontáveis os soldados da bondade. Podem não ter o brilho de Mahatma Gandhi ou de Nelson Mandela, de Teresa de Calcutá ou de João Paulo II, mas são pontos de luz e de esperança. Eis quatro exemplos portugueses.

A 8 de Março de 1495, em Montemor-o-Novo, via a luz João Cidade, mais conhecido por João de Deus.
Viveu apenas cinquenta anos, e deles trinta e tal sem sabor a santo. Primeiro foi pastor, depois soldado, voltou a ser pastor, voltou de novo à guerra, voltou a ser pastor… Como pastor guardou somente gado alheio, como soldado teve amargas desilusões. Trabalhou como servente de pedreiro, vendeu livros de aldeia em aldeia, teve mesmo uma pequena livraria. Um dia trocou o nome por João de Deus, pôs-se a cuidar “loucamente”, imoderadamente, incorrigivelmente, dos enfermos e dos pobres.
O resto já o sabemos: os poetas soltaram a inspiração, a Igreja pô-lo nos altares , fê-lo padroeiro de enfermeiros e hospitais.
Vivendo continuamente no meio da miséria, nunca se acostumou a ela. Manteve intacta a sua sensibilidade perante a dor alheia. Sensibilidade fresca, vermelha, viva como o sangue da romã.
Ao bispo de Valladolid que o censurava por acolher vagabundos e prostitutas na sua casa, respondeu: “Só albergo uma pessoa indigna de comer o pão das esmolas: sou eu mesmo!”
Cheio de elegância espiritual, de doçura, aventureiro e sonhador, simultaneamente enérgico e prático. A pensar nele, alguém escreveu que “os verdadeiros e únicos ‘Príncipes da Igreja’ são os santos”.

António de Lisboa, ou de Pádua, ou de Todo o Mundo – tanto faz – nasceu por volta de 1195.
Milagreiro de amores, detective das coisas perdidas, Oficial graduado do Exército – quantas façanhas lhe atribuem seus devotos! A maioria deles nunca leu uma página da suas Obras. Talvez por isso, parece que tem mais sucesso como pregador de peixes do que a mobilizar gente para Cristo.
Gregório IX chama-o “Arca do Testamento” e, pelo vigor da sua pregação, “martelo dos hereges”. Pio XII proclama-o “doutor evangélico”, por ser um ás em teologia e rechear a sua doutrina com o perfume do evangelho. Paulo VI define a basílica de Pádua “clínica do Espírito”, tantas são as conversões que ali se operam. A liturgia invoca-o como “protector em todas as adversidades”.
Teve um sonho: evangelizar Marrocos – o mundo pagão. Cumpriu um desígnio: reevangelizar a Itália e a França – a velha Europa.
“Cultivava continuamente a inteligência com imenso estudo”. Nos seus discursos – onde se citam 250 obras de 96 autores – aparece um homem aberto às ideias novas, às novas sensibilidades e preocupações que fermentavam na sociedade.
Não se limitou a dar esmolas, ainda hoje simbolizadas no “pão de Santo António”. Defendeu tenazmente a dignidade da pessoa, a solicitude pelos mais débeis. Lutou contra a usura e outras formas de injustiça.
Hoje, António dirige o nosso olhar para esta Europa que avança numa só direcção, material e consumista; esta Europa que precisa de solidariedade para dentro e para fora, de diversidade reconciliada, de reencontro com as suas raízes.

Das margens do Zêzere subiu à Guarda João de Oliveira Matos para a servir como bispo auxiliar durante quarenta anos, boa parte deles imolados a percorrer a diocese à maneira de Frei Bartolomeu dos Mártires.
A cavalo ou a pé, no Inverno por caminhos encharcados ou recamados de neve, no Verão sob um sol impiedoso, trabalha sem descanso, prega, confessa, crisma, organiza. De noite reza esquecidamente.
Com raro sentido de oportunidade, vai dando resposta às necessidades. Urge evangelizar o mundo do trabalho? Funda o Círculo de Operários. Baixíssimos são os níveis de cultura religiosa? Dinamiza a catequese. O pão do evangelho não se reparte com fartura? Prega “a tempo e fora de tempo”. Não vêm as pessoas à Igreja? Vai a Igreja às suas casas por meio de jornais, “A voz do Pároco”, “O amigo da Verdade”. É preciso sacudir padres e leigos? Organiza retiros, Jornadas Eucarísticas, Peregrinações. A miséria atinge idosos e crianças? Creches, lares, o “Outeiro de São Miguel”. Mais que remediar, convém prevenir e promover? A Sociedade de Produção e Educação Social, a Escola de Trabalhos. Para dar seguimento a tudo isso? A Liga dos Servos de Jesus.

Em Miranda do Corvo, o P. Américo inaugurava assim a primeira Casa do Gaiato: “Com três pequeninos, filhos de ninguém, no dia 7 de Janeiro daquele ano 1940, sentámo-nos à mesa. Tanto frio lá fora, tanta chuva, e nós tão quentinhos lá dentro. O primeiro espanto deles foi ver uma mesa posta. O segundo foi ver comida quente e perguntavam o que era, e como se comia. O terceiro espanto foi o leito onde se deitaram”.
A família cresceu. Veio Paço de Sousa, Veio o Tojal, veio Setúbal, viriam outras Casas.
“Somos farrapeiros, apanhamos farrapos. Plantamos e regamos. Deus dá o crescimento e eles são figuras, rapazes adoráveis”.
Nessas casas, “com bafo de mãe”, com sabor a lar, eles começam de facto a encontrar-se, libertam-se da “escola” que traziam, valorizam-se, ganham auto-estima e alegria.
Método? Amar. Quem preside? O rapaz. Quem ajuda, quem serve? O rapaz? “Obra de rapazes, para rapazes, com os rapazes”.
E quando dali saem, são colocados no comércio e na indústria, nos escritórios ou nas fábricas, na advocacia e no ensino. Esta “a política do Pai Nosso. Todos irmãos, todos filhos de Deus”.

Abílio Pina Ribeiro, cmf

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