O LADO BOM DA VIDA

“Toda a gente precisa de um desaguadoiro” – dizia Teresa de Ávila. Precisamos de uma válvula de escape. O cansaço e as tensões acumuladas por quem vive atado permanentemente ao cepo do dever reclamam, a seguir, uma actividade distensiva que funcione como descarga. Deixemos a mania de ser anjos e arcanjos, de contrário nem a pessoas humanas chegaremos. Um motor que nunca se desliga acabará por dar o berro. Um arco sempre tenso rebenta quando menos se espera.
Um velho de oitenta e cinco anos dizia aos netos mais ou menos o seguinte: “Se tivesse de recomeçar a vida, não seria tão austero nem tão rígido. Andaria mais descontraído. Faria mais experiências, escalaria mais montanhas, contemplaria mais vezes o pôr do sol, comeria mais gelados e beberia menos leite”.
Ele era de essas pessoas que vivem atreladas a um método certinho, dia após dia, que não vão a parte alguma sem levar um termómetro, uma camisola de lã, uma caixa de farmácia e um impermeável. Se pudesse voltar à infância, brincaria mais na neve e apanharia mais correntes de ar.
Confesso que eu também pertenço à raça dos que são escravos da própria obrigação. Meu pai ensinou-me a só comer o pão honrado, ganho com o suor do rosto. Mas se de mim disserem “Este cidadão nunca teve férias”, não tomarei isso por grande elogio.
Educado fui numa linha de abnegação falsamente cristã em que o corpo era considerado como fonte de pecado ou inimigo do espírito. Importava por isso castigá-lo, prendê-lo à tortura dos horários, negar-lhe todo o tipo de conforto.
Não se tinha em conta uma verdade que modernos pensadores gostam de salientar: que Deus, ao criar o mundo e as pessoas, pôs em todas as funções humanas, além dum fim prático, utilitário, uma boa talhada de prazer. Uma pessoa come e bebe para subsistir, mas, além desse objectivo imediato, o comer e o beber deleitam, satisfazem. A roupa protege-nos do frio, mas também embeleza e concorre para termos um aspecto agradável. A sexualidade garante a reprodução e a conservação da espécie, mas o exercício da mesma produz felicidade e gozo. A festa e o jogo fizeram-se para repousar, mas também para celebrar a dimensão alegre e criadora da nossa existência. As casas não constituem refúgio unicamente, são um lar onde acendemos, como um fogo palpitante, a beleza e o aconchego da intimidade. Sim, depois de ter formado o mundo, Deus ficou extasiado perante a obra feita e regou-a com o champanhe do prazer…
Prazeres reprováveis, há-os certamente. O gozo selvagem de quem enriquece à custa do sangue alheio não merece o aplauso social nem o da própria consciência. Fartar-se de prazeres sexuais à custa da exploração de outros seres humanos é uma baixeza intolerável.
Mas há prazeres que ninguém precisa de evitar. Por exemplo, essa mina de oiro a que chamamos amizade. A magia palpitante e baratíssima da música. O sermos gratuitamente milionários de sol, de ar limpo, ou do “desmedido sorriso das ondas marinhas”. Um cacho de uvas ou um copo, um romance ou um poema, um filme ou uma partida de futebol, de vez em quando. Ou uma boa cavaqueira com os amigos. Teresa de Ávila derretia-se com uma divinal perdiz. Alguns santos mamavam um charuto em dias de festa.
A penitência também existe e a principal é a que resulta da renúncia ao mal e do esforço por levarmos uma existência digna. A que vem imposta pela vida familiar, pelos laços de casamento, pela fidelidade às promessas e contratos, pela actividade profissional, pelo tarefa de cada dia.
Antes, um cristão, para sacrificar o corpo, comia pouco e mal ou dormia no chão duro. Hoje tem de se alimentar devidamente, repousar o necessário para ter saúde, equilíbrio, resistência nervosa, e exercer bem o seu papel na sociedade. Qualquer fidelidade exige formas de disciplina, de ascese. Nada mais glorioso que uma existência levada sem egoísmo e convertida em projecto de amor a Deus e ao próximo.
A nossa mortificação é proveitosa na medida em que aproveitar aos outros. Porque não é de “mortificação” que mais necessidade temos, mas sim de “vivificação”, de infundir vida em nós próprios e aos demais por meio de uma verdadeira caridade.
Cada coisa tem o seu lugar. Há tempo para o trabalho e tempo para o folguedo. Tempo para pescar e tempo para enxugar as redes. Tempo para gastar fósforo no estudo e tempo para descansar os olhos e o cérebro.
Nobre e justa é a pessoa que, amando-se a si mesma, procura também amar o próximo com igual medida.

Abílio Pina Ribeiro, cmf

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