Um amigo meu pregou uma ferradura nas traseiras do automóvel “para ter mais sorte”. Deu-me para rir, evocando as palavras do “Malhadinhas” de Aquilino Ribeiro: “Albardado seja” quem acredita nisso. Realmente, só conheço um animal a quem as ferraduras livram de acidentes, mas… tem quatro patas.
Acho piada a essa credulidade, bem como às pessoas que a exploram. O ar doutoral e sério com que esses adivinhos, futurólogos, astrólogos, bruxos, espiritas, cartomantes, feiticeiros… falam das dos horóscopos, lançam as cartas, observam os “cristais” ou mexem o pêndulo, não dá mesmo para rir? Algumas pessoas pelam-se de medo perante os maus olhados, o pio da coruja ou a chegada dos dia treze. E quê? Põe-se um homem a chorar?
O facto é que o aroma do irracional seduz rebanhadas de gente. Basta dar uma olhadela pelas livrarias dos aeroportos, dos supermercados ou das estações de combóio, para ver as pilhas de livros sobre falsas profecias, ciências ocultas, falsas profecias, terríveis enigmas e quejandas outras coisas…
Em tempos idos confiava-se desmedidamente no poder da razão e na sua capacidade quase infinita para criar instrumentos de progresso científico, cultural, social ou económico.
As desilusões choveram sobre o mundo. No campo da medicina, por exemplo, resolveram-se alguns problemas, mas apareceram outros. O domínio da energia nuclear, a manipulação genética, encheram de medo o ser humano. Este, ao mesmo tempo que avança no domínio da Terra, também a vai estragando e perde o respeito pela natureza, a contemplação, o sentido do sagrado e da transcendência. Globalizam-se o comércio e os costumes, mas não se globaliza a paz e a justiça.
Da soberba da razão passou-se então ao cepticismo e ao pensamento débil. As conhecidas afirmações de que “a verdade absoluta não existe”, “cada um tem a sua ideia”, “o que importa é acreditar nalguma coisa”, revelam que a inteligência humana se converteu numa potência frustrada. A cabeça de muita gente parece que só serve para pôr o chapéu e, às vezes, para fazer as palavras cruzadas. Vivem-se tempos de irreflexão, de irracionalidades, crendices e toleimas.
Contudo, a pessoa humana, insatisfeito, aspira a ser feliz a sério, procura a Verdade e a Vida com maiúsculas. Quando vê fechadas as portas dessas aspirações, busca outras saídas. Se a razão – e um fé apoiada na razão – não funcionam, recorre às seitas, ou à superstição, ou à magia.
Mais do que ridicularizar os profissionais do embuste e da ilusão, tenho pena dessa gente que consulta os astros e as cartas, o zodíaco e seus signos. Tenho pena desses “escorpiões” e desses “peixes”, desses “touros” e desses “carneiros”. Acontece o que dizia Chesterton: “Desde que deixaram de acreditar em Deus, não é que não acreditem em nada. Acreditam mas é em tudo”. Esta credulidade é somente um aspecto duma religiosidade que se vai chamando “laica”.
Outro dos seus deuses chama-se consumo. O seu templo são as grandes superfícies comerciais. O ritual celebra-se em determinados dias e a determinadas horas. O seu evangelho dá pelo nome de publicidade. A sua espiritualidade confunde-se com a moda.
A publicidade, com efeito, anuncia notícias boas e alegres: ”Para te sentires feliz e realizado, compra isto e mais aquilo, segue este ou aquele modelo, adopta tal ou qual comportamento”. Materialismo, isto? Qual quê? Esta gente tem um espírito, que é a moda: o que se veste, o que se diz, o que se faz, o que se usa.
A grande sentença de Déscartes: “Penso, logo existo”, parece que, hoje, se poderia traduzir assim: “Eu tenho, eu divirto-me, eu chamo a atenção, eu faço o que me apetece, eu nem sequer me dou à maçada de pensar – portanto existo, sou alguém”.
Perdoem-me o exagero. O certo, porém, é que este aroma do irracional se vai espalhando cada vez mais longe e não nos torna mais seguros nem mais felizes. Corremos o perigo de morrer asfixiados, por falta de um respiradouro para o Infinito.
Segundo Bento XVI, no seu livro Jesus de Nazaré, o cristianismo introduziu no mundo a racionalidade. Para as antigos, o mundo estava dominado pelas forças do mal, pelas obsessões diabólicas. Jesus mandou os seus discípulos “expulsar os demónios”. A fé cristã vinha libertar o mundo dos medo dos demónios, “exorcizá-lo”, purificá-lo. Por muitos “deuses” e por forças malignas que possam flutuar no mundo, Deus é um só e ó único Senhor: se lhe pertencemos, tudo o mais não tem nenhum poder. O mundo provém da Razão eterna, e só esta Razão criadora tem poder sobre ele. De este modo, a mensagem cristã “racionaliza” o mundo, coloca-o sob a luz da razão que provém da Razão criadora, toda bondade, e a ela conduz.
O verdadeiro crente não se deixa, pois, levar por medos nem por superstições e crendices. “Ao entrar numa igreja – escreveu com humor o inglês Chesterton – é preciso tirar o chapéu, mas não a cabeça”. A fé tem de ser lúcida, libertadora e transformadora.
E, também por isso mesmo, não se pode converter numa planta dormideira nem numa vitamina dos fracos. A relação com Deus aviva a consciência de que Deus é Pai e todos os homens e mulheres são irmãos. Compromete-nos, pois, a combater por um mundo mais fraterno, mais racional e ordenado. Foi nesses sentido que Jesus “não veio trazer a paz, mas a espada”. O crente não pactua com a injustiça, a desonestidade, o egoísmo, a opressão do semelhante; enfim, com toda essa desigualdade que vai para além do que é razoável e admissível.
Abílio Pina Ribeiro, cmf