Em meditações antigas sobre o Inferno aplicava-se a Platão e Aristóteles uma sentença terrível: “Ai de ti, se és louvado onde não estás e atormentado onde estás”. Os célebres filósofos eram aplaudidos nas Universidades e padeciam no Inferno.
Além da tolice de condenar à perdição os dois incomparáveis Mestres – também havia quem os erguesse até aos píncaros do céu – a máxima traduz bem a comédia do dia a dia. Um governante, um arquitecto, um gestor público, um eclesiástico, um educador, no lugar onde estão, na função que exercem, raramente são reconhecidos como valores e, menos ainda, elogiados. Certo é que, às vezes, lhes atiram incenso e rosas, mas, tão depressa os vêem longe, crivam-nos de balas. As homenagens rendidas aos falecidos não compensam os ovos podres e as calúnias que lhes arremessaram durante a vida.
Dá-me graça esta mania, ou mau gosto simplesmente, que têm os humanos de fechar os olhos à beleza e à virtude espalhadas pelo mundo para os abrirem a meia dúzia de nojices. Repara-se mais em duas ervas que espreitam no meio do jardim que na maravilha prodigiosa das flores. Se após um julgamento de 80 minutos o árbitro comete um deslize, aqui d’el rei que é gatuno e filho de tal mãe. Mata-se um cidadão a servir a Pátria e a desviver-se pelo próximo, e esse heroísmo fica às ocultas, enquanto se dirigem os focos todos para o resultado dum pequeno descuido.
Razão tinha Miguel de Unamuno. Na fachada da capela da Universidade de Salamanca o escultor colocou lá bem no alto, quase despercebida entre os rendilhados de pedra, uma pequena rã. Um dia em que o cicerone se afanava em fazê-la ver a um grupo de turistas, passa Unamuno e comenta: “Mau é não ver a rã. É pior, todavia, ver unicamente a rã”.
De facto, manda a elegância e a caridade que se mire no seu todo a obra-prima e não se fixe tão-somente a rã, o capricho, o pormenor insignificante.
Mais deselegante ainda é olhar o próximo de través ou de ângulo errado. Os seres humanos, como os vitrais, contemplando-os de maneira justa, compõem uma bela imagem, colorida, apaixonante; mas não passam dum amálgama de riscos desconexos e cinzentos quando olhados às avessas.
No meio da escuridão – dizia alguém – cintilam sempre estrelas para quem tiver olhos de ver o firmamento; num campo devastado brotará sempre uma flor para quem souber olhar.
Bem feliz seria o mundo se as palavras “invejar” e “competir” fossem riscadas e substituídas por “apreciar”, “aplaudir”, “engrandecer”. Sentir uma opinião favorável ajuda-nos a prosseguir a escalada, multiplica as energias e aumenta consideravelmente as probabilidades de êxito.
Quantos inventos foram postos em marcha pela simpatia de quem soube descobrir, no borrão imperfeito ou no embrião, a obra de arte ou o germe duma criação arrojada!
Como observa um bom amigo meu, não se pega num doente pela parte do corpo ferida; nem se reconstrói um edifício a partir de um muro a esboroar-se, mas começando por hode haja pé firme, estabilidade, segurança.
Diz o mesmo bom amigo que temos de imitar as mães: com uma bofetadita, corrigem o filho, lavam-no da culpa; mas logo vem o beijo, que sara e reanima.
Só ficamos a ganhar com essa atitude magnânima para com o semelhante. Pois quem acende uma luz é o primeiro a beneficiar da sua claridade. E luz que alumia um, alumia cem ou mil.
Abílio Pina Ribeiro, cmf
(FOTO: El viajero fisgón)