FERAS Á SOLTA

Que os demónios da economia andam soltos pelo mundo, engordando umas pessoas e chupando outras, estragando o meio ambiente e causando perturbações e guerras, toda a gente o sabe. Que eles tomaram de assalto o coração humano, demonstrou-o, e bem, Luís González-Carvajal.
Vem na dianteira o demónio do rendimento. Dominados por ele de maneira tola, muitos homens e mulheres renunciam a qualquer actividade que não seja produtiva e a toda a forma de descanso. Não há mais lugar para o “ócio”; só para o “negócio”. A arte, a poesia, a amizade, a oração, parece que não servem para nada. Só importa o que se tem, o que se vê, o que se produz. Pobre, então, de quem já não pode “render” devido à doença ou à idade!
Vem a seguir o demónio do dinheiro. O dinheiro começou por ser um instrumento para medir o valor das coisas e facilitar o comércio. Hoje é procurado por si mesmo como forma de caçar riquezas e poder. Não se olha a meios nem maneiras de aumentar a conta bancária ou de ampliar empresas e negócios.
Este afã de ganhar cada vez mais, para gastar cada vez mais, e gozar cada vez mais, tem um elevado preço. Cada vez há menos gente a bater-se pela justiça, pela fé, pela honra. O dinheiro tornou-se verdadeiro ídolo. Os americanos até escreveram nas notas dos seus dólares: “Em Deus confiamos” (In God we trust)?
Dificilmente alguém admitirá que o dinheiro é o objectivo principal da sua vida. No entanto… por causa dele uma pessoa gasta fósforo a estudar, aprende diferentes línguas, faz horas extraordinárias, mas não se bate com o mesmo empenho a favor da justiça e dos direitos humanos. Se lhe correm mal as coisas, perde o sono, mas não deixa de dormir porque a sua fé arrefeceu ou porque milhões de seres humanos passam fome.
Há, também, o demónio do egoísmo. A procura do lucro pessoal é o motor da actividade económica. Pouca gente se dedica a promover o interesse público e, se o promove, não é pelos bonitos olhos do seu próximo… Quando este demónio arranja altar no coração humano, acaba por afectar as relações interpessoais. O imaturo diz: “Amo-te, porque preciso de ti”. Só uma pessoa adulta pode dizer: “Preciso de ti porque te amo”. Este amor adulto, maduro, não é fácil numa sociedade capitalista. “O bom samaritano era mau economista” – observava Dickens. As pessoas tocadas pelo demónio do egoísmo estabelecem relações de amizade na medida em que lhes são úteis, e acabam com elas se deixam de lhes trazer benefícios.
O demónio do hedonismo, da procura descontrolada do prazer, é outro rei e senhor. Vivemos numa sociedade de alto consumo e de conforto. Satisfeitas as necessidades reais da maioria da população, uma publicidade insistente impele-nos a satisfazer desejos cada vez mais sofisticados.
A cultura do esforço e da recompensa já passou à história. Antes, o objecto desejado era sempre o resultado final de um tempo prolongado de trabalho e de poupança. Agora tende-se a possuir os objectos antes de os termos ganho: “Compra hoje e pagarás amanhã”.
Fazemos parte de uma geração “branda”, “light”, alérgica às virtudes fortes, mal preparada para assumir a dureza da vida. Quando somos golpeados pela dor, não conseguimos entendê-la nem aproveitamos as possibilidades formativas que ela encerra.
O ascetismo e a renúncia são indispensáveis por razões humanas, e não somente por razões cristãs. Dá gosto ver os atletas de alta competição evoluir na ginástica rítmica, ou nos saltos, ou na corrida. Só eles sabem de quantas horas de exercício, de esforço, de método e disciplina, precisaram para atingir aquela aparente espontaneidade. Na vida de qualquer ser humano apresentam-se de vez em quando situações-limite a que só consegue responder adequadamente quem estiver “em forma”. E essa “forma” adquire-se à base de treinos prolongados e custosos.
Não esqueçamos, também, o demónio da permanente novidade. As indústrias procuram diminuir a vida útil dos seus produtos, a fim de garantirem novas vendas. Para tanto recorrem, primeiro, ao desgaste técnico, fabricando-os com materiais cuja duração limitaram artificialmente e procurando que as reparações não compensem a despesa. Acrescentam, depois, o desgaste psicológico dos bens de consumo, mudando com frequência os modelos e as modas para que, mesmo em bom estado, deixem de ser atractivos para quem os possui. Os interesses da economia vão-nos convencendo de que seremos mais felizes se renovarmos continuamente as nossas coisas.
Estamos na cultura do “usar e deitar fora”. Deitam-se fora as embalagens descartáveis, os pratos ou os copos de plástico, e até os vestidos de noiva feitos de papel. O pior é quando agimos da mesma forma em relação às pessoas. A relação torna-se cada vez mais fugaz e a fidelidade mais intermitente. Generaliza-se a imagem alegre dos apaixonados que, dentro de três meses ou de um ano, deixarão de se amar e nem sequer entenderão como tinham podido amar-se tanto.
Tendemos, além disso, e sem dar conta, a confundir o melhor com o novo, a saltar de experiência em experiência, a não construir nada sobre rocha firme, a não deixar amadurecer coisa nenhuma.
Importa enxotar, por último, o demónio da competitividade. A sociedade liberal rege-se pelos princípios: “Quem tem unhas toca guitarra” e “Cada um olhe por si e o último que o leve o diabo”.
Certa dose de competição pode ter efeitos positivos: estimula a criação de riqueza e o progresso; atiça o amor próprio das indivíduos para que dêem o melhor de si mesmos. Não esqueçamos, porém, que a deusa Eris, para os gregos, era ao mesmo tempo a deusa boa da competição e a deusa malvada da discórdia. Em nome da competitividade, a economia tornou-se “horrorosamente dura, cruel, atroz” – reflectia Pio XI.
O vírus da competição penetrou na escola, no desporto, no consumo. Vivemos na era do recorde, do “Guinness”, ainda que o recorde seja o do tamanho duma omelete ou do número de pessoas que se conseguem enfiar num automóvel. Já no século XVII, Hobbes comparava a vida humana a uma corrida sem outro objectivo que o de chegar primeiro: “Ver os outros atrás é uma glória. Vê-los adiante, humilhação. Ser ultrapassado, uma desgraça. Ultrapassá-los, felicidade”.
Estes e outros demónios andam por aí à solta como feras ou escondam-se como piolhos nas dobras do coração humano. Mas se puxarmos pelo que há de melhor em nós mesmos, eles não passarão de pobres diabos.

Abílio Pina Ribeiro, cmf

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