A CRIAÇÃO VIRADA DO AVESSO

No princípio, depois de ter criado a Terra, Deus viu que a sua criação era boa e linda, mas o ser humano resolveu estragá-la, virando-a do avesso.
Disse o ser humano: “Quero para mim todo o poder no Céu e na Terra”. Distinguiu os humanos entre grandes e pequenos, humildes e poderosos. Foi o sexto dia antes do fim.
E disse o ser humano: “Ergam-se muros entre as nações: de um lado as aliadas e do outro as inimigas”. E houve “o eixo do mal” e “os defensores da liberdade”. Foi o quinto dia antes do fim.
E disse o ser humano: “Juntemos as nossas fortunas no mesmo sítio e criemos instrumentos de defesa: os meios de comunicação social para controlarmos o espírito dos humanos, as agências de notícias para manipularmos as consciências dos humanos, a força militar para impormos a nossa vontade aos outros humanos”. Foi o quarto dia antes do fim.
E disse o ser humano: “Haja censura para distinguir a nossa verdade da verdade alheia. Melhor ainda, estabeleçamos duas censuras: uma para escondermos a verdade no estrangeiro, outra para nos protegermos da verdade dentro de portas”. Achou isso bom e certo. Foi o terceiro dia antes do fim.
E disse o ser humano: “Fabriquemos armas que destruam cidades e povos”. Criou as armas, ligeiras e pesadas, químicas, biológicas e nucleares, e os mísseis que as levassem pelos ares fora. Abençoou-as, dizendo: “Crescei e multiplicai-vos; enchei as águas do oceano e a vastidão do firmamento”. Foi o segundo dia antes do fim.
E disse o ser humano: “Façamos um deus que pense como nós e proceda à nossa maneira”. Criou um deus à sua imagem e medida, e deu-lhe as suas ordens: “Deixa que eu use o teu nome em vão e ponha a Terra inteira debaixo dos meus pés. Tudo será teu, se fizeres a minha vontade”. Olhou para a sua obra e ficou radiante. Foi o último dia antes do fim.
E não satisfeito com esta “criação às avessas”, resolveu ir mais longe ainda: “Terra, mar e ar: tudo seja privatizado”. Por todo o lado se podia ler o letreiro: “Proibida a passagem!” Delimitou “reservas”, “espaços aéreos”, “milhas marítimas”, “zonas económicas exclusivas”, e defendeu-as como um leão o seu território.
Mas o bem-estar de todos não cresceu; a terra não se tornou mais agradável, nem o ar e a água mais acolhedores e mais limpos.
Houve quem utilizasse a natureza unicamente para si, explorando-a sem escrúpulos. E enquanto uns mergulhavam em piscinas de sonho, outros não tinham sequer onde lavar as mãos. Uns dormiam no meio de plásticos e de latas, enquanto outros passeavam cães de luxo em espaços verdes.
O ser humano avançou no domínio do universo e avançou também na sua corrupção. Mais tiranizada do que governada, a natureza acabou por revoltar-se. O progresso, qual flecha invertida, feriu de morte o próprio atirador.

Mas a esperança ainda brilha como um arco-íris. O homem e a mulher do nosso tempo ouviram dizer que só a Deus “compete a soberania sobre todo a criação. Ele entregou-a ao ser humano, a todos os seres humanos. Ninguém se deve considerar dono das coisas, mas apenas seu administrador. Elas são um bem de toda a Humanidade.
Contudo, ainda falta muito caminho para andar. O homem e a mulher de hoje puseram de moda a ecologia, mas estão bem longe de praticar a fraternidade universal. Preocupam-se mais com a extinção das baleiase dos leões marinhos, do que com as pessoas dizimadas pela fome.
Para além dos pecados de lesa-natureza (como o sobre-aquecimento global provocado pelo excesso de exploração, e o consumo dos recursos da Terra), fazem-se mil e uma agressões ambientais: soltar as feras da agressividade e de outras paixões incendiárias. Criar nas famílias uma atmosfera irrespirável de nervosismo, incompreensão e falta de entre-ajuda. Corromper a alma das crianças e dos jovens. Trabalhar sem moderação ou não trabalhar o suficiente. Transgredir as leis do trânsito e expelir baforadas de fumo. Malgastar electricidade, água e papel ou fazer barulheiras desgraçadas. Descuidar a higiene corporal e estraçalhar plantas e ervas. Não prevenir e combater o uso da droga nem se empenhar devidamente em fornecer a todos pão, cultura, saúde, habitação, emprego.
Mas todos nós sonhamos com o ramo de oliveira, que é a paz: a paz do coração, e a concórdia entre as pessoas, a harmonia com a natureza e a intimidade com Nosso Senhor.

Abílio Pina Ribeiro, cmf

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