O JOGO DAS PALAVRAS

Lê-se na Bíblia que a Sabedoria de Deus “gostava imenso de brincar com os seres humanos”. Quem diz Sabedoria diz “Comunicação”, “Palavra”, “Verbo”. O jogo de Deus com os seres humanos atingiu o ponto mais alto, quando o Verbo de Deus se fez homem. Jesus Cristo é Deus pronunciado, dialogado, conversado, traduzido em acções e palavras terrenas.
Pela mão do escritor espanhol Bernardim Hernando viajei através dos quatro evangelhos e registei as palavras – tirante a palavra Jesus – que aparecem mais de 100 vezes na Sagrada Escritura.
Ressalvando algum erro nesta contagem caseira, chegamos a um resultado surpreendente.
A palavra mais citada é “homem”, abrangendo varão e mulher, ou seja, a pessoa humana: 279 vezes. A palavra “mulher” aparece 96 vezes e a palavra “homem” (no sentido de varão) apenas 43 vezes.
Podemos fazer aqui uma pausa e começar a nossa reflexão: Parece que Deus só enche a boca a falar do ser humano. Este é a verdadeira jóia da coroa divina. “Que tem o ser humano para assim pensardes nele?” – perguntava a Deus um salmista, fascinado e comovido.
Engraçado também o facto de a mulher ser focada mais vezes do que o homem. Talvez Deus tenha um fraquinho pelas criaturas cuja dignidade nem sempre é devidamente reconhecida.
A segunda palavra mais frequente é “Deus”: 263 vezes. A terceira, “filho”: 233 vezes. A quarta, “pai”: 220 vezes.
Deus, filho, pai. O filho mais relembrado do que o pai. Os pais não tiram o pão da boca para o dar aos filhos?
A quinta palavra mais pontuada é “dia”: 170 vezes.
A sexta é “gente” ou os sinónimos “multidão”, “povo”: 143 vezes.
A sétima é “céu”: 138 vezes. A oitava, “casa”: 121 vezes. A nona, “reino”: 115 vezes.
Céu, reino, casa, morada, tenda: o doce sabor a lar, o calor do fogão divino. Somos da da família, da linhagem, do sangue de Deus.
A décima palavra é “crer”, acreditar: 113 vezes. Quem ama expõe-se, revela-se, abre-se à pessoa amada. Assim faz Deus em relação ao ser humano. Este fia-se de esse Deus-Amor, acredita n’Ele, confia, entrega-se. Eis a fé. Como diz, e bem, Urs von Balthasar, “só amor é digno de crédito”.
Note-se agora a diferença de linguagem – e de mentalidade subjacente – entre os dois Concílios do Vaticano. O Vaticano I (1870), nos seus textos oficiais, nunca utilizou palavras como “diálogo”, “amor”, “fraternidade”, “história”, “leigo”, “novidade”, “serviço”, “pobre”. E socorreu-se do termo “evangelho” apenas uma vez.
Já o Vaticano II (1962-1965) emprega 131 vezes a palavra “amor”, 31 vezes a palavra “diálogo”, 87 vezes os vocábulos “fraterno”, “fraternidade”, fraternalmente”, 63 vezes a palavra “história”, 200 vezes a palavra “leigo”, 37 vezes a palavra “novidade”, 42 vezes a palavra “pobre” e 21 vezes a palavra “pobreza”, 97 vezes as palavras “servir” ou “serviço”; 188 vezes a palavra “evangelho” ou “evangelizar”.
Longe de mim insinuar que o Vaticano I não bebeu na fonte evangélica, não estabeleceu diálogo nem promoveu a concórdia, não foi percorrido por uma onda invasora de fraternidade. Simplesmente, determinados valores não pesavam o mesmo que pesam hoje em dia, porque sopravam outros “ventos” e não luziam os mesmos “sinais dos tempos”.
Bom, e as nossas palavras?
A ligar importância ao que se diz e ouve a todo o momento, andamos alagados em “diálogo”, “solidariedade”, “reconciliação”, “justiça”, “ecologia”, “opção pelos mais desfavorecidos”. Em tempos de corrupção alastradora, de infindáveis manobras e jogadas obscuras, usa-se abusa-se de “transparência”, estabilidade”, “cultura democrática”, “tolerância”, “paz social”, etc.
Mas o povo adverte, e com toda a razão, que “obras são amores e não palavras doces”. “Palavras e plumas leva-as o vento”. “Palavras não adubam sopas”.
Por isso estou de acordo com David Lloyd George (1863-1945), Primeiro Ministro da Inglaterra: “Devia-se exigir que os homens públicos vivessem de harmonia com os discursos que proferem”. Se anulássemos a distância que vai da teoria à prática, das palavras às obras, dos valores propagados aos valores vividos, a Terra seria um planeta bem mais lindo e habitável.

Abílio Pina Ribeiro, cmf

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